As memórias, essas, não fogem. Um dia vêm ao nosso encontro e trazem com elas um ímpeto para acontecerem novamente. A dobra do tempo. Ocorre uma relação mútua construída por linhas-guia que apontam para caminhos que não tinham ainda sido iluminados. É esta luz, o decorrer do tempo, que emana das obras de Pedro Chorão na sua mais recente exposição Diálogos Sensíveis, na Galeria Sá da Costa, em Lisboa.
Apresentam-se nove obras como uma espécie de pinturas-entidade que guardam, nas suas mãos, a baqueta que marca o passo que leva ao desconhecido e que fornece pistas sobre o que nos querem dizer. São zangas, birras, berros, gritos, sussurros, risos, cantos…? O sensível do diálogo está precisamente em todas estas vibrações que Pedro Chorão experimentou e pelas quais se deixou ser experimentado, no intuito investido de não saber o que está ao longe, apenas o aqui e o agora. O não saber para onde ir e para olhar, o não saber o que dizer ou o ficar sem resposta para o que a composição profere, são os problemas procurados pelo artista, com a ambição perpétua de os conhecer, reconhecer e, acima de tudo, resolver. Para Pedro Chorão, é sobretudo intimidade e obsessão intensas, é uma razão de ser tão concreta e definida como outra coisa qualquer[1].
O tecido da realidade fundiu-se, há muito, com o avesso das telas — numa volta à prática do pintar na parte de trás dos quadros que o artista tinha entre 1980 e 1990 — e com as cores oscilantes entre o quente, o frio e o térreo. Escorre, entre as transparências dos véus e opacidades dos planos, aquilo que vai “aparecendo”[2] — em gestos anacrónicos da própria linha temporal que, de facto, tem vida própria, o gesto transtemporal de Pedro Chorão —, sejam bichos-sombra que equilibram ou desequilibram as anamneses, com Bicho 7, por exemplo, ou mesmo paisagens pinceladas com o carinho das histórias de juventude, com Vista da Serra da Estrela nos anos 50.
É nestes tais processos-conversa que se vão esboçando as linhas que compõem as estruturas ortogonais que servem de apoio ao trabalho de Pedro Chorão que, aqui, sugerem, nas camadas de tinta acrílica, uma certa infinitude. Lá está, a memória que nunca acaba, que nunca vai embora de vez! Se assim o quisermos, o infinito é a linha reta, seja ela horizontal ou vertical. É aquela que abre a coreografia entre universos paralelos, que nos presenteia com o traço constante do horizonte, de manhã, de tarde ou de noite — no princípio, no meio ou no fim —, entre nós e o que fomos, o que viremos a ser. Afinal, diante de uma imagem (obra, neste caso) estamos diante do tempo[3] e Huberman sempre teve razão.
A nós cabe-nos deixar levar pelos ventos que rompem pelas janelas da galeria, que eventualmente nos vão trazer o primeiro gesto, a primeira palavra e o primeiro olhar da nossa relação com a matéria da lenda do tempo. Pedro Chorão dá-nos a entender, de uma maneira muito concreta, que a linha entre a nossa existência e os segredos do outro lado, seja ele qual for, é muito ténue. Não é abismo algum, mas sim uma passagem que precisa do nosso gesto, da expansão do campo de ação do nosso corpo. Aí, ele tornar-se-á curiosidade, tornar-se-á fluxo de energia que fará crescer a finitude do nosso olhar.
No fim, o que acontecer… acontece.
Diálogos Sensíveis, de Pedro Chorão, está patente na Galeria Sá da Costa até 24 de maio.
[1] de Pedra Filosofal, de António Gedeão.
[2] Segundo o artista, na entrevista a José Sousa Machado que acompanha o catálogo da exposição e, em parte, a folha de sala.
[3] Didi-Huberman, G. (2017). Diante do Tempo, pp. 1.