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On the road: Porta 33, Escola da Vila, Francisco Janes e Chain Reaction
DATA
14 Mai 2025
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A comida sacia tanto mais quando é partilhada e acompanhada de conversa. Não será em vão que um dos grandes tratados da filosofia ocidental, O Banquete de Platão, tenha a comida como centro da oralidade clássica e de um labiríntico debate sobre a mesa, regado…

A comida sacia tanto mais quando é partilhada e acompanhada de conversa. Não será em vão que um dos grandes tratados da filosofia ocidental, O Banquete de Platão, tenha a comida como centro da oralidade clássica e de um labiríntico debate sobre a mesa, regado com o fogo do vinho dionisíaco, mas temperado com o juízo apolíneo. A comida conforta, a bebida liberta e a presença dos muitos convidados asseguram o deleite da partilha e do diálogo. Os introvertidos soltam-se, os extrovertidos contêm-se; conversas cruzadas e entrecruzadas; segredos confiados no meio de gargalhadas concupiscentes; novas amizades, velhas amizades; memórias reavivadas no calor da nostalgia. É um ritual – tão superficial quanto os ditames das boas maneiras, tão profundo quanto o debate sobre as fundações dos Estados.

Sentamo-nos à mesa e deixamos a magia da comida fazer o seu trabalho ancestral, social e biológico que para os antigos era natural e que os modernos aprenderam a esquecer. Trocamos de pratos, passamos a comida entre mãos, mantemos os copos bem cheios e, com o tempo, quando a comida desaparecer e as migalhas se espalharem no chão, comemos de uns e de outros, comemos uns e outros. A vida acontece.

Se quisermos manter uma comunidade coesa, nada melhor que esta ritualidade. Se quisermos derrubar um regime, nada melhor que a heresia de uma refeição em grupo.

É de espantar que a comida, tão rotineira, tão elementar, continue a ser a força mais radical que as civilizações alguma vez podem vir a conhecer. Talvez porque as refeições à mesa perderam a qualidade agregadora de outrora. Talvez porque nada de novo e semelhante a substituiu como cola ou cimento social. Talvez ainda porque o que é provado e comprovado tenha de ser, de tempos a tempos e paradoxalmente, renovado de forma igual, relembrando as lógicas pretéritas que estruturam comunidades: partilha, empatia e generosidade.

Dessas memórias, guardamos impressões, pinceladas fugazes de um encontro intenso e prazeroso.

 

O ponto de encontro foi a PORTA33. A ocasião, o projeto Chain Reaction, de Elizabeth Prentis e Hugo Brazão, cujo objetivo é estabelecer pontes de diálogo entre artistas, curadores, instituições, durante as muitas refeições programadas, reunindo numa “assembleia da abundância” – projeto de Jesse James e do Walk&Talk – pensamento e perspetivas de futuro otimistas. O propósito é contido e inscrito dentro de uma discursividade crítica e institucional, mas o alcance é bem maior: a construção ou consolidação de uma comunidade.

Sentaram-se à mesa mais de vinte pessoas, que trocaram experiências sobre o sistema da arte regional e nacional, mostrando o que têm desenvolvido nos últimos meses. O pesadelo logístico foi sendo compensado com a satisfação dos comensais e o bom humor.

Antes, nas salas de exposição da PORTA33, Francisco Janes mostrava o resultado de uma residência na Escola da Vila, no Porto Santo – um território extraperiférico, em tudo limitado pela geografia. A exposição parte da mesma base de trabalho de Chain Reaction: a comunidade local.

Vídeos, fotografias e sons servem de referência para a construção de um lugar que, ao momento, parece existir nas bordas incertas de um sonho. A edição dos vídeos segue a estrutura evocativa de um ensaio poético e onírico, e a montagem conduz a uma imersão nos trechos fílmicos que Janes encadeou durante a sua longa residência na Escola da Vila. Há uma elementaridade imediata: o vento, a lua, a luz do sol. Os vídeos têm qualquer coisa de peripatético, de errante; um devaneio pela orla do mar, pelos dragoeiros e fenómenos geológicos de Porto Santo; uma meditação mediada pela lente da câmara, contemplando os efeitos do tempo sobre as coisas vivas.

O som acompanha o vídeo, para depois se desprender na escuridão. A paisagem natural e humana é também uma paisagem sonora. Na ausência da imagem, o som serve de referente para a imaginação, impele o espectador a completar a composição multimédia e fenomenológica desenhada por Janes.

Simultaneamente espaço cultural e comunitário, a Escola foi resgatada do esquecimento e dignificada pela PORTA33. Não fosse a boa vontade e energia dos seus fundadores, Cecília e Maurício Reis, a Escola seria hoje um parque de estacionamento, acrescentando aridez à já naturalmente árida ilha. O projeto Escola do Cinema Natural, que Francisco Janes montou com os fundadores da PORTA33, é o exemplo perfeito da capacidade pedagógica da arte e das instituições de arte, que servem aqui de orientadores, facilitadores e potenciadores, gerindo aptidões, estimulando a curiosidade e encontrando espaço para que valências despertem da dormência a que foram votadas por inexistência, até então, de recursos e estruturas capacitadas para tal. Apercebemo-nos, deste modo, que os vídeos de Janes resultam de muitos trechos captados pelos alunos que integraram a Escola do Cinema Natural, e que a polissemia e polifonia que incorporam encontram aí uma justificação. Janes assume o risco de tratar resultados que podem não ser totalmente satisfatórios, mas o objetivo nunca é sobre o resultado final. É antes trabalhar uma forma radical de generosidade, que ultrapasse cismas e preconceitos relativos à atividade artísticas, propondo uma práxis mais comunitária que solipsista.

Os fotogramas sucedem-se. Há um brilho na fugacidade do tempo. Cada vídeo é um rizoma que se expande paulatinamente, sugerindo múltiplas narrativas e desenvolvimentos. O artista é apenas um facilitador, um mediador, alguém que puxa pela formação e a educação informal ao longo da vida. É possível que esse investimento se quede por aí, como um ato isolado. Mas se assim for, já valeu a pena. Outras iniciativas serão postas em marcha, diferentes, por certo, mas com a mesma intensidade e paixão pela vida, em que a arte sai de si mesma e se deixa contaminar com a incerteza e evanescência do quotidiano, dos fluxos vitais, humano e não-humanos. O que há de belo nestes vídeos e sons é o crepitar de vida, a imperfeição da mão que quer fazer – e fazer bem – mas que falha na perfeição. Jacques Ranciére saberia colocar esta reflexão de forma mais eloquente, com toda a certeza. No entanto, também a escrita e a linguagem são perfeitamente imperfeitas.

De volta à mesa, uma garrafa é entornada, braços atravessam-se pelos pratos em busca de mais comida e bebida. A conversa é sempre inesgotável. Ficamos a conhecer o projeto Trégua e o trabalho que têm desenvolvido com pessoas privadas de liberdade. Há dúvidas morais e éticas que nos fazem questionar a pertinência das prisões, do seu propósito e da vida possível entre grades. Poderá a arte servir de elo entre duas realidades tão assimétricas? Poderá a arte servir os propósitos de uma inserção social, quando muitas das instituições prisionais parecem falhar nessa matéria? Trégua é um projeto curioso, profundamente político e radical no que se faz em Portugal e dentro das práticas sociais e híbridas da arte.

O Coletivo Quimera interpela-nos com a realidade artística local e o trabalho que jovens têm de fazer para se fazerem mostrar. Quando as oportunidades não aparecem, inventam-se, em conjunto, buscando e usando as forças de cada um. A RAUM apresenta um exemplar de uma das suas edições. O formato desconstrói a sequencialidade da publicação, com folhas solta e desenhos e textos que se justapõem desafiando a lógica habitual do livro.

As plantas aéreas baloiçam no teto em busca de humidade. Todos falam do jardim suspenso da PORTA33 e de Cecília – um lugar mágico, dizem. E então subimos as escadas, em privado, e cuidadosamente saltamos para cima de um telheiro repleto de canteiros e vasos verdejantes: buganvílias, estrelícias, mais plantas aéreas, suculentas. A natureza encontra os seus caminhos em alicerces, em vigas, pilares e redes. Os gatos caminham ágeis pelo telhado de vidro. Sentamo-nos neste paraíso improvisado e falamos de flores e plantas e paisagens. Saímos do tempo e estranhamos a realidade. Tudo é abundante, nesta ilha.

 

Residência, de Francisco Janes, pode ser visitada na PORTA33 até junho de 2025.

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