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A vida e outras formas
DATA
14 Jul 2025
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AUTOR
Filipa da Rocha Nunes
"Outros Lugares / Everywhere" é uma exposição de Muntadas na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa, que se sucede, cronologicamente, à inauguração de duas exposições individuais institucionais marcantes do mesmo artista: "Lugar Público", no Sesc Pompeia, em São Paulo, e "Sobre / About Asia", na Casa de la Moneda, em Madrid, inauguradas em abril.
Ambas as exposições convocam projetos de pesquisa em geografias queridas, com as quais o artista mantém uma relação de trabalho constante e próxima. Muntadas fala-nos sempre do projeto artístico como metodologia de trabalho, assente em linhas de investigação flexíveis, contextualizadas num determinado entorno.
Quando se entra na galeria, em Lisboa, lê-se LIFE IS EDITING impresso a vermelho em letras maiúsculas sobre um fundo branco. Uma imagem-paisagem, daquelas de vista desafogada, que auferem ferramentas para os próximos tempos. A paisagem, tão natural quanto cultural, é profundamente política, e os seus recortes retratam os tempos históricos. Life is editing sente-se como uma revelação, na entrega de uma imagem madura da vida, contendo a possibilidade de um refazer e aprimoramento contínuos, em oposição à sensação de primeira e única vez, ansiogénica e implacável.
Cria-se um espaço de reconciliação com o passado e emplacenta-se o futuro, sugerindo que a matéria preciosa da vida, feita memória, continua a ser passível de edição para a posteridade.
Na investigação sobre a vida, a primeira imagem é muito ampla, como um avião único a atravessar o céu azul. Um avião sabe sempre para onde vai até porque nunca poderia levantar voo sem conhecer o destino de chegada. A cinética do voo é apresentada ao mundo como um sistema controlado, ao contrário do sonho de voar, como fazem os pássaros.
A gaivina-do-ártico é a ave que percorre a maior distância durante a sua vida, em migrações contínuas, desenhadas em “S” sobre o Oceano Atlântico, numa distância equivalente a ir e voltar da Lua. E o “S” que desenha repetidamente no oceano, para a frente e para trás, forma o infinito, que se apresenta cartesianamente para explicar o mundo-próprio.
A sugestão da amplitude, o céu, contrasta com os limites do mapa-múndi. O mapa do mundo é uma das imagens mais reproduzidas e vistas de sempre: em salas de aula, de jantar, de estar, de credo e de descanso. Talvez os sistemas políticos e económicos procurem na paisagem as pistas para a sua sistematização e consequente codificação da vida, que, por osmose ou reflexo, vai adquirindo os seus modos - da paisagem, claro. A mesma razão pela qual sentimos alívio no encontro com o mar furioso, ilimitado, ou encontremos sempre, no miradouro em altura, a solução para a vertigem.
Na parede oposta, a série City Sentences (frases) apresenta um conjunto de serigrafias que poderiam ser um mapa situacionista de vários países. “Continente bom dia” é a frase que surge numa nova edição que localiza Portugal neste tempo presente. Em led luminoso, publicitário, dá nota da sombra dos dias que correm, marcados por um constrangimento coletivo motivado pelo medo, enquanto recorda aquela característica meio naïve, meio agregadora, de continuar a dizer “bom dia”, todos os dias.
Sobre o medo, temos sempre mais perguntas do que respostas. A vídeo-instalação Alphaville (2011), sobre um condomínio fechado construído em São Paulo nos anos 70, símbolo de um ideal de segurança que se revela como síntese de isolamento, exclusão e vigilância extrema, parece resolver-se agora em Lugar Público (2025), a exposição inaugurada no Sesc Pompeia que, ao contrário do complexo privado, convida toda a gente a estar: “Para onde vamos?”
A vida. O fogo, o ar, a terra, a água. O olfato, o paladar, a visão, a audição, o tato. A morte. Pese a aparente dualidade das circunstâncias, a proposta da vida implica Reflexões sobre a morte. Informam-se ideias universais, a paisagem, com imagens detalhistas, técnicas: o voo do pássaro e as instruções de segurança no avião, o mapa do mundo e as identidades singulares e coletivas, os cinco sentidos e a escolha do caixão para a finitude. Do geral para o particular e vice-versa, este continua a ser o movimento do gesto filosófico que, como o “S” da gaivina-do-ártico, encontrará, em vez do Mundo, a Lua ou outros corpos celestes.
Volto à primeira imagem: Life is editing - que é como quem diz, continuamos. É preciso continuar[1]
A exposição de Antoni Muntadas está patente na Galeria Cristina Guerra até dia 20 de setembro.
[1] Regina Parra, São Paulo, 2018
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