Se as portadas estão descerradas e a entrada é admitida na galeria, desde o primeiro momento a prudência faz-se observar. Uma enorme jarra, inspecionada por inquietos roedores espectrais, interpõe a passagem por uma das arcadas da Monitor, no bairro de San Lorenzo. À esquerda, um pardal pende de uma camélia, uma imagem em tons circunspectos de presente ilegível e ânimo oculto; sobre um noren, mais que do que criar separações ou condicionamentos o intento parece ser o de proteger. De quê?
Há na exposição de Thomas Braida, Tacciono i Fiori, um segredo abafado ao visitante, não diligentemente, mas em sigilo quedo. As preocupações são outras, não somos bem - nem mal - vindos, antes tolerados, porquanto o empenho se inclina a importantes trabalhos. Por nós passa uma pantera, de flores ao dorso alheada. Paira um frémito mudo que mansamente amuralha viço carnal. A mais ligeira brisa de paciência e afeto faz a camélia e a ave balançarem, e logo tudo firma na diáfana devoção ao edifício que se está a ancorar.
Não tanto um segredo, uma omissão. Sem hostilidade, porém, reserva. A conservação da doce concórdia faz-se de silêncios.
Para lá das paredes da galeria, nesta paróquia proletária de Roma, respira-se comunidade e resistência. Um espelho e, mesmo assim, para cá resguardam-se os bondosos esforços. A cada obra o mesmo absorto zelo em afastar do território comum qualquer mácula do bando civilizacional. Noutros tempos os trabalhos de Thomas eram frequentemente povoados por humanos, animais e híbridos, construções pictóricas de inspiração mitológica, religiosa ou clássica, com tratamentos luxuriantes e encenações narrativas. Agora, vislumbrando ainda literatura e tradição, a azáfama humana desapareceu, bendita!, flora e fauna serenam. A ausência faz-se de vestígios, sente-se que pessoas aqui passaram, mas o "quem?" que instintivamente surge com a máscara ou o vaso esfuma-se quando se entende que não há lacunas, tudo está presente. Uma profunda lida passa, sob o palco. Encobertos fluxos de solidariedade e seiva alimentam o sistema e uma nova ordem encontra o equilíbrio.
Ainda assim, a inexistência incomoda. Somos nós. Apesar do real, neste mundo não há que temer, não houve extinção. O desaparecimento, mais que razia, parece abandono - corpóreo após ético. Somos testemunhas dos resultados da apatia moral extrema que se abateu sobre o bando? Assim aponta a cuidada remodelação que vemos brotar nas pinturas e objetos: aqui, uma qualquer alquimia orgânica incipiente; ali, cura e fortalecimento defronte renúncias; mais além, aventura guiada por animadas estrelas autógenas, tantas meditações aconchegadas no retirar do insidioso lote. Mea culpa afinal. E se a magia transborda a tela nas molduras, os proveitos são interiores e cerrados. Um lugar de desumanização enquanto remédio onde o desinteresse e distância são paladinos. A desistência foi dádiva.
A vergonha é de outros. Aqui, sinceridade e desembaraço regem em cada relíquia cuja divisa se transformou de cobiça em amizade. Há um orgulho e confiança, por certo irrefletidos, na certeza de que as amarras não se partiram, mas se desmaterializaram. O rubor brilha, delícia que jamais se dará a saborear. Um preâmbulo em papel que à primeira nos iludiu entre as cenas colossais dita o elementar: a solidez e brilho da colmeia, fundeando-se no coletivo, abre espaço ao desígnio e sonho de cada qual. Por despojos culturais, a mais ínfima e misteriosa criatura busca a luz, vai dentro. Se o celeste farol nos seduz por igual, condenados estamos a vogar ao largo.
Tacciono i Fiori, de Thomas Braida, está patente na Monitor Rome até 25 de Julho.