Por vezes, passo uma manhã inteira a tentar recordar um sonho que tive. Apenas algumas imagens fugazes passam pela minha mente – breves, esquivas – e quanto mais as persigo, mais elas escapam. Ainda assim, embora não consiga reter as imagens, o sentimento do sonho abraça-me o ser. Por fim, quando percebo que não as poderei capturar, contento-me apenas com o sentimento.
A exposição individual da artista contemporânea brasileira Sónia Gomes, Torcer, amarrar e pender, na Kunsthalle Lissabon, foi como uma viagem à fonte das imagens que há muito persigo em vão. Se olharmos durante tempo suficiente para as camadas de obras, começamos a sentir-nos arrastados para um vórtice, um lugar onde um notável sentido de equilíbrio nos acompanha silenciosamente. Esse equilíbrio não reside num ponto fixo; pode situar-se nos pés, no corpo ou no ponto mais alto. A complexidade equilibrada de Gomes não perturba; fundamenta. É deste tipo de complexidade que precisamos: uma complexidade que resista, que fale, que se erga e que nos faça sentir que está silenciosamente ao nosso lado.
No seu romance Slowness, Milan Kundera propõe uma metáfora: quando tentamos recordar algo, o nosso passo abranda; quando queremos esquecer, andamos mais depressa. No trabalho de Gomes, sinto uma lentidão, um ritmo suave através do qual a memória vem à superfície. Este ato de recordar torna-se uma forma de recriar o passado, preservando o tempo como um tesouro singular e ininterrupto.
Nos nós das suas peças juntam-se objetos de gerações passadas (agora obsoletos para o olhar do mundo moderno): contas de oração, borlas, botões. Despojados do seu contexto original, persistem com uma determinação silenciosa, mas inabalável. Alguns materiais de costura – carretéis, linhas, agulhas – são guardados tal como estão, intocados pela transformação. Trata-se de uma declaração de existência bruta. Uma mensagem que insiste simplesmente em ser, sem necessidade de se tornar algo mais. Nos poros do tecido, sentimos ainda o sopro de um passado que permanece vivo, ainda pulsante.
Desde a infância que observava com admiração a transformação dos tecidos pelas mãos da minha mãe - que era costureira. Recordo esses tecidos que se moldavam e encontravam a sua forma no corpo. Este processo enchia-me sempre de admiração. O tecido nunca foi apenas um material que cobria o corpo humano; era também um reflexo do pensamento, da tradição, da crença e de uma filosofia de vida. As obras de Sónia Gomes, que ganham vida através das suas mãos, despertaram em mim esse mesmo fascínio de infância. Na prática, os pensamentos da artista parecem traduzir-se diretamente no material: a sua suavidade ou rigidez traem o seu mundo interior. Ramificadas com nós, estas formas assemelham-se aos axónios e dendritos de uma célula nervosa: estruturas feitas para sentir, não apenas para ser.
Os pontos de união entre os tecidos são deixados à vista. Ao contrário das costuras escondidas do vestuário convencional, estes pontos de união são deliberadamente expostos. Esta abertura convida à transparência, incitando-nos a não esconder as preciosas acumulações do nosso subconsciente, mas a honrá-las e revelá-las.
Uma linguagem nascida dos nós
Numa época marcada pelas mais ferozes ondas de consumismo, lembro-me das palavras de Roland Barthes: “Toda a produção é criação e, portanto, ‘boa’; todo o consumo é destruição e, portanto, ‘mau’.”
De acordo com esta equação simples, a imaginação dá origem a uma poderosa forma de expressão: um discurso moldado pela espontaneidade, que resiste à estrutura medida, comprovada e documentada da vida.
O trabalho de Gomes desenvolve-se através de duas naturezas primárias: uma plástica – maleável e escultórica; outra linguística. O tecido endurece onde é atado e amolece onde é pendurado. Desses nós, emerge um discurso que honra o trabalho, a sobrevivência e o valor do artesanato. Neste turbilhão de cores e formas, vislumbramos a natureza abstrata, translúcida, mas profundamente sentida da própria criação.
As peças referem-se, aqui, à própria estrutura, formada ao nível do material e das suas transformações, e não às suas representações ou significados. Porque é que a moda fala tão obsessivamente de “roupa”? Porque é que insere uma teia autoritária de significados entre o objeto e o consumidor? Como sabemos, a razão é económica. A sociedade industrial calculista deve produzir consumidores que não calculam. Não é o objeto que incita ao desejo, mas o nome; não é o sonho que vende, mas o significado.
“E depois, o sol começa a brilhar”
Nesta pequena pintura, observamos a luz a emergir de uma câmara obscura. A realidade e o reflexo alimentam-se mutuamente, até que os dois se tornam indistinguíveis. A fronteira entre o observador e o mundo começa a esbater-se. Uma das funções mais convincentes da câmara obscura é a sua capacidade de separar o ato de ver do corpo físico, tornando a visão incorpórea. A obra de Sónia Gomes …e depois, o sol começa a brilhar evoca esta ausência de corpo, permitindo-nos observar o mundo como se a própria visão se tivesse abstraído em puro olhar. Gomes convida-nos a ver, porque a luz, acima de tudo, é ver.
Na obra intitulada Cadeira deparamo-nos igualmente com um estado de entrelaçamento. As cores imitam o tecido, o tecido imita as cores, até se juntarem num todo. Como resultado, Cadeira oferece-nos a promessa de um lugar. Aponta para a luta da Frente de Luta por Moradia, um movimento que se opõe à negação sistémica de um dos direitos humanos mais fundamentais do Brasil: o direito à moradia. Em 1997, a ocupação do edifício abandonado Nove de julho, em São Paulo, marcou um ponto de viragem. Em 2000, as mulheres que lideravam várias ocupações uniram-se para formar o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), mobilizando e organizando famílias sem-abrigo.
A habitação é, neste caso, muito mais do que uma questão de propriedade. Diz respeito a alguns direitos dos quais ninguém deverá ser privado – pertença, segurança, continuidade – e torna-se assim uma declaração de independência. Cadeira recorda Um quarto só seu de Virginia Woolf, esse espaço sagrado, inalcançável, a que ninguém pode aceder e que não nos pode ser retirado. Um lugar que todos – especialmente as mulheres – precisam para criar e para seguir em frente.
Na sua exposição individual Torcer, amarrar e pender, Sónia Gomes evoca uma espécie de eremitério, santificando tudo aquilo que o mundo moderno passou a desvalorizar: a solidão, a lentidão, o silêncio, a atenção e a ternura. Um afastamento do mundo, não como uma fuga, mas como uma forma de clarificar e apurar a nossa relação com a multiplicidade de significados que, agora, permanecem “lá fora”. Torna-se um ponto de convergência, onde a filosofia e a imaginação se encontram num nó deliberado.
A exposição Torcer, amarrar e pender pode ser visitada na Kunsthalle Lissabon até dia 16 de agosto.