Segundo Aristóteles, a arte imita a natureza e, às vezes, a completa. O preceptor de Alexandre também afirma que a arte tem, entre as suas essências, suas características inerentes à humanidade: a diegese e a mimese, respectivamente, o discurso e a imitação, a narração e a reprodução. Esses princípios acompanham a arte pré-histórica; antiga; medieval; renascentista; pré-colombiana; e começaram a se fragmentar na arte moderna e contemporânea, seguindo a limitada historiografia ocidental.
Desde 1911, definido como a sétima arte por Ricciotto Canudo, o cinema reúne muito das tantas outras. Na prática cinematográfica se recorta e utiliza camadas de som, vídeo, escrita, plasticidade, direção de arte, arquitetura, artesanato, mãos e máquinas antes distintas e compartimentalizadas – diluídas na composição de uma estrutura única que tem como objetivo contar suas histórias de forma mais ou menos uníssona. De forma muito sintética, o dramaturgo e escritor estadunidense David Mamet, no livro Sobre direção de cinema, afirmou: “isso é filmar, é justapor imagens”. Fazer cinema seria então justapor diferentes técnicas para compor imagens. Seria toda imagem uma miragem?
Jacques Derrida, filósofo franco-magrebino, concedeu entre 10 de julho de 1998 e 6 de novembro de 2000, uma entrevista a Antoine de Baecque e Thierry Jousse, publicada na Cahiers du Cinéma, n° 556, em abril de 2001. Intitulada Le cinéma et ses fantômes (O cinema e seus fantasmas, em português), a rara entrevista do filósofo sobre cinema nos guia a pensar a sétima arte como capturadora de fantasmas. Isto porque captura/registra as aparições do presente, as mesmas que desaparecem ou se transformam, deixando de ser o que outrora pareciam. Até mesmo a película, através da qual se projetava o filme, é identificada por Derrida como elemento fantasmagórico, dotada de espectros, propagadora dos fantasmas.
Conhecido por habitar as entranhas do cinema underground estadunidense, Harmony Korine é um diretor, roteirista e multi-artista estadunidense muito conhecido pelos filmes Spring Breakers – Garotas Perigosas, o qual assina como diretor e roteirista, Kids, do qual foi roteirista, e Gummo/Vida Sem Destino. Esses últimos foram definidos pela Folha de São Paulo, um dos mais lidos jornais brasileiros, como “polêmicos”. Sua exposição individual, com curadoria preciosa de Agnés B na La Fab, em Paris, apresenta um raro ensaio sobre como a prática cinematográfica pode pairar sobre e germinar a síntese e os desdobramentos do cinema. Digo, o artista apresenta obras que versam sobre fantasmagoria, construção de um espaço, intervenção/criação na/da realidade, sobreposição de técnicas e subversão de narrativas hegemônicas sobre ideias e personas.
Ao entrar na La Fab, atravessando a ala La collection, o que vemos é um conjunto de obras de Korine apresentadas de forma a que transitem entre a fantasmagoria já citada e o segundo elemento crucial para o cinema e a produção do artista: o espaço. Nas quatro primeiras obras à esquerda, de título Orange Ghost, vemos em destaque uma forma não-humana sem detalhamento e com pinceladas que causam um efeito blur/embaçado. A obra desta série que apresenta o maior grau de nitidez antecede as demais, sempre distorcidas tornando então a confusão um padrão. Em seguida, de forma muito perspicaz, a curadoria nos apresenta a obra The Golden Torques of Uliad, uma fotografia com elevado grau de granulação sobre a qual Korine pintou e depois fotografou novamente. Tais intervenções destacam o viés fantasmagórico da produção com chapéus de bruxa/mago/fantasma e tons de laranja, cor que se repete da obra anterior, e que, neste caso em razão da nitidez fotográfica, pode levar-nos a uma confusão com o efeito proeminente das câmaras térmicas, que teoricamente detectam o volume e movimento de espíritos. O tensionamento entre analógico, manual, digital, impressão e pintura à mão, agrega à exposição uma elevada consistência pois exemplificam o diálogo entre exercícios técnicos, seus resultados e as propostas visuais e discursivas da mostra e do artista.
Em seguida, White and Black Check, uma pintura de óleo e látex sobre tela composta por pequenos quadrados brancos e pretos, tem sua composição elaborada de forma calculada para transmitir uma rica variação entre formas e volumes. O movimento sugerido através, claro, de um estudo matemático, também se relaciona com o memorável Quadrado Negro de Malevich, chamada pelo mesmo de o quadro “zero das formas”. Ali estaria um buraco/quadrado negro capaz de deglutir todas as formas da natureza. E é bem verdade que White and Black Check carrega fantasiosa uma relação com o chroma key, superfície sobre a qual toda e qualquer “forma da natureza” ou figura pode ser projetada e nela, após um processo de edição, será exibida. Apresentada na sua sequência, Mini House Sitter 2, oléo, látex e colagem sobre tela, chama à atenção pelas formas retangulares e já regulares, uma linearidade na composição. Os retângulos sobre fundo preto revelam a imagem repetida de uma casa. À medida que nos distanciamos da tela, percebemos sua semelhança com um conjunto de rolos de negativos perturbados pela tinta branca lançada na tela pelo artista, quase que num esforço constante de deturpar as imagens, distorcer a realidade e sua nitidez ou claridade. Mais uma vez, nota-se esse viés através do mix de técnicas, sempre mais ou menos presentes na sua produção. O uso de colagem nessa obra se torna uma intrigante relação com a montagem quando feita de forma analógica, um processo no qual se costumava colar um quadrado do filme (película, rolo) ao outro trecho que iria suceder a cena. Tratava-se da montagem de um quebra-cabeças, uma colagem manual.
Separada pelo pilar que sustenta o prédio da La Fab, no jovem 13º distrito de Paris, está a obra que menos explicita o teor fantasmagórico das produções até então apresentadas. Twitchy Glue Boy, óleo sobre tela, nos guia a um ponto muito importante e brilhantemente “diluído” no percurso que a curadoria propôs: o espaço. É apenas na última obra da parede aqui destacada que temos o espaço mais próximo do realismo e sobre ele o delírio ou fantasmagoria representado pelo “rascunho” de uma forma quase humana (ou “Banana de Pijamas”), numa nítida referência não apenas a uma animação 3D, mas também à rotoscopia, se pudermos perceber os traços do artista como ensaios de luz. A paisagem, ou em termos cinematográficos, o cenário mais ou menos realista, com profundidade detalhada sobreposto a uma figura nitidamente irreal fica mais interessante quando lemos A significação no cinema, de Christian Metz, no qual o autor afirma: “resumindo, o segredo do Cinema consiste em colocar muitos índices de realidade em imagens que, embora assim enriquecidas, não deixam de ser percebidas como imagens. Imagens pobres demais não nutrem suficientemente o imaginário para que delas se consiga extrair uma realidade. Inversamente, a simulação de uma fábula por meios tão ricos quanto o real, já que reais, – é o caso do teatro – corre sempre o risco de não aparecer senão como a simulação por demais real de um imaginário sem realidade”. Ou seja, o cinema busca algum equilíbrio entre distância e proximidade, irreal e realidade. Assim, mesmo a fantasia tem algo de real, pelo menos na imaginação de quem o assiste.
Justamente buscando confundir ou perturbar a memória de muitos espectadores, Korine apresenta Devil Goat, uma instalação fotográfica que marca a primeira entre algumas outras obras que apresentarão Macaulay Culkin em contextos absolutamente opostos à mitificação brutal ocasionará pelo sucesso decorrente da saga Esqueceram de Mim, na qual Culkin foi ator principal. Em decorrência do sucesso estrondoso e das intensas violências cometidas pela exploração mediática recorrente na fase atual do capitalismo, o jovem ator sofreu adoecimentos psíquicos possivelmente causados também pelas noções de perfeição e pela imposição de um comportamento a seguir. Contrariando o imaginário coletivo (ao menos o admitido), e no sentido da libertação ou inversão desse símbolo da perfeição, Korine apresenta Culkin comendo de boca cheia, sentado relaxado e capturado por um ângulo que não busca ressaltar sua beleza, por exemplo. Mais tarde, ao longo da exposição, também veremos fotografias que integram o fotolivro the bad son (ou o filho mau), na qual Culkin se mostra cada vez menos com uma faceta infantilizada. Harmony Karine também chega a apresentar obras que resultam diretamente da sua produção como diretor e roteirista, como é o caso da série The Milk Chicken Review, derivado do seu filme Gummo, com impressões fotográficas que remetem aos prints de vídeos analógicos. Algumas das impressões contam com intervenções (talvez canetadas ou pinceladas), nos olhos das personagens. Nessa série, temos ainda mais nítida a presença da violência. Segundo o texto de Marguerite Saint-Quen, “os protagonistas que estão suspensos no tempo são o foco dos retratos: um menino apontando uma arma, outros com as características que foram enegrecidas como as de delinquentes, um visto no meio do corpo, o outro em close-up. A alternância entre poses espontâneas e fotos de personagens em situações “depravadas” cria a vibração das imagens”. O mesmo texto afirma que “esta série está ancorada no universo de Harmony Korine, que é particularmente fascinado pela cultura do sul dos Estados Unidos. Tendo crescido em Nashville, ele parte muito jovem para Nova York, mas a partir de seu primeiro filme, Gummo, ele retorna ao sul de sua infância”. No Brasil, Gummo é conhecido pelo título Vidas sem destino.
Seguindo uma proximidade com suas produções, a curadoria nos apresenta também algumas das obras mais recentes do artista: um conjunto de pinturas feitas a partir da filmagem do seu filme AGGRO DR1FT. Dirigido e roteirizado por Harmony Korine, o filme tem Jordi Mollà e Travis Scott no elenco. O fator plástico do filme, explorado pela faceta de pintor de Korine, torna-se evidente em alguns frames do filme, nomeadamente os que foram filmados com câmera térmica infravermelhos. Numa das telas, olhos atentos notarão a silhueta do rapper Travis Scott. Mas o que surpreende mesmo é a destreza técnica com a qual Korine consegue compor a obra. Muito além da básica profundidade, luz e composição, há um estudo técnico através do qual, em diferentes momentos, o artista utiliza diferentes técnicas num quadro que persiste inteiro na proposta. São as camadas, atravessamentos e diálogos entre técnicas que tornam a produção de Korine absurdamente consistente, beneficamente assombrosa e admirável. Mesmo nos mais simples dos trabalhos, há diálogos. Raros são seus trabalhos que não são minimamente compostos por técnicas mistas, como o próprio cinema.
Por fim, proponho uma última sobreposição de obras para compor o diálogo com o imenso mosaico da ampla produção artística de Harmony Korine. Rememoro aqui A forma do filme, famoso livro composto por diversos textos do cineasta Sergei Eisenstein. No Brasil, o livro conta com prefácio do crítico de cinema José Carlos Avellar, que no prefácio afirma:
“O cinema, para Eisenstein, começou a ser inventado bem antes de começar de fato a ser inventado.
A montagem já existia na pintura, (…) já existia no teatro (…), existia também na música, como podemos ver nos experimentos de Debussy e Scriabin, comparáveis ao que num filme pode ser feito com o uso de grande-angulares bem abertas e teleobjetivas bem fechadas; e na prosa, como podemos ver em Gorki, Tolstoi ou Dickens; e na poesia, como podemos ver em Maiakovski ou em versos japoneses como, por exemplo,
‘Corvo solitário
Galho desfolhado
Amanhecer de outono’
sinais de que o poeta escreve com planos de cinema e monta seu poema assim como um realizador monta seu filme, formando uma nova ideia a partir da fusão/colisão de planos independentes”.
A exposição está patente na Fundação La Fab até dia 23 de março.