Aquando da sua nomeação como curadora da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), em maio de 2022, Sandra Vieira Jürgens afirmou ao jornal Público que as “exposições físicas espalhadas pelo país” eram parte relevante da missão de dar a conhecer a CACE, que assumiu prioritária. As propostas de aquisição de obras, que constam dos relatórios da Comissão para a Aquisição de Arte Contemporânea (CAAC), enquadram-se numa proposta que estabelece que “as obras adquiridas sejam expostas em núcleos expositivos [,] numa lógica de dispersão territorial”. A CACE foi instituída em 1976 e a CAAC em 2019, altura em que se retomou o processo de aquisições, interrompido no começo do milénio. O esforço de aproximar as obras do público alargado, descentralizando a coleção, já resultou em empréstimos de peças a instituições dentro e fora do país, assim como em mostras que tiveram lugar por todo o continente português (Aveiro, Castelo Branco, Coimbra e Vale do Côa foram alguns dos lugares onde se exibiram peças da Coleção).
Este Verão, como chuva que atenue a estiagem, a CACE chegou ao extremo Sul do país e exibe-se, até 13 de setembro, no Palácio da Galeria (que volta a ser casa da arte mais recente), em Tavira. A Coleção é tutelada por uma entidade do setor empresarial do Estado, a Museus e Monumentos de Portugal, e o desenho da estratégia da sua visibilização cabe à atual curadora. Em Tavira, Jürgens chamou para colaborar consigo o artista e curador Fernando J. Ribeiro, para dar continuidade à ideia de uma “coleção de coleções”, feita mais de diferenças do que de semelhanças1. A ideia que serve de eixo a esta mostra, tal como referido na folha de sala, é a da “diluição da distância de dimensões aparentemente longínquas e, inclusive, inconciliáveis” - propósito que a sala de abertura parece cumprir de maneira muito feliz quando concilia uma imponente peça de Rigo 23, Iperé – Cicatriz de Tordesilhas (2017) com a Sombra projectada de Cynthia (1968), um plexiglas iluminado de Lourdes Castro. Seria este o mote do diálogo, a conversa instauradora de conversas, o catalisador da diluição de distâncias para as peças expostas nas restantes salas. Pelos espaços do Palácio da Galeria, em diálogo, igualmente, com a luz que Tavira deixa entrar pelas suas inúmeras janelas (elemento ingrato na arrumação expositiva), sucedem-se trabalhos de artistas consagrados (e mesmo desaparecidos, como a referida Lourdes Castro, António Palolo, Jimmie Durham ou Patrícia Almeida) lado a lado com valores emergentes, mais recentemente incluídos na Coleção (casos de Ana Manso, Sara Bichão ou Hernâni Reis Baptista).
A maioria das obras mostradas foi incorporada na CACE através de aquisições recentes: dos 25 artistas da mostra, sete viram obras suas adquiridas em 2023, seis em 2022, quatro em 2021, uma em 2020 e outra em 2019. De aquisições anteriores podem ver-se – e saúda-se a sua exibição no Algarve – peças de Paula Rego, António Palolo, Lourdes Castro e José Pedro Croft (que integram o depósito da CACE na Fundação de Serralves), de Jimmie Durham (habitualmente depositado no Museu de Arte Contemporânea – Centro Cultural de Belém) e Joaquim Bravo (que faz parte do depósito da CACE na Coleção de Arte Contemporânea de Coimbra). Se a estatística servisse de amostra da dinâmica das aquisições da CACE, comprovaria o seu vigor crescente. Mas, em rigor, a contabilização terá de passar por um cotejo das obras na página web da Coleção, que serve de complemento a Chuva de Verão, revelando os lugares de onde vêm as vozes destes diálogos. A lógica do incremento pode ser perversa, e o ritmo a que se constitui uma coleção não tem de ser crescente – mas a diversificação das tipologias, dos suportes e das formas de expressão, essa sim, merece ter sido sublinhada. A exposição de Tavira poderia apresentar mais obras fora do âmbito da pintura, da escultura/instalação e da fotografia. A este propósito, encontramos apenas Sinal i (2019), a instalação audiovisual de Sara Chang Yan, que faz projetar um vídeo sobre papel perfurado. Esse carácter de exceção é acentuado porque a obra se exibe isolada numa sala – o eventual diálogo teria de se estabelecer, por exemplo, com a sonoridade implícita na instalação de João Ferro Martins, Composição Conjugal (2013), um “piano” construído a partir de elementos como um cabo de vassoura, um colchão, copos de vidro onde se esperaria encontrar as teclas e três ratoeiras a fazer de pedais. Deste piano mudo e frágil, por sua vez, poderia ouvir-se música amplificada por uma coluna de som que se pareceria com a elegante escultura de Maria Lino em madeira de castanheiro (Sem título, 2015), um dos objetos em que fica mais evidente a “união com a natureza” proposta na folha de sala (apesar de, precisamente no labor ético de Lino sobre aquele pedaço de madeira, se intuir alguma da “melancolia” que se pretende negar à exposição). Outros diálogos parecem ficar subentendidos por uma visão geral das peças – mas não necessariamente os que se poderia esperar da disposição em que se colocam, e da convivência em cada sala. As esculturas em materiais mais ou menos pesados, mais ou menos ligeiros, de Vera Mota (Ensaio. Pausa, repete, 2020), por exemplo, parecem encurraladas na pequena sala que as protege, quando se tornariam loquazes na vizinhança das cores de Francisca Carvalho (“Ashlesha”, 2018) – ou talvez bichanassem subtilezas ao correr funâmbulo dos traços de cobre e papel de Bruno Cidra (“Untitled #7”, 2019). O convite à conversa, feito na impossível cadeira dupla de Pedro Valdez Cardoso (The space between us, 2003), interpela cada uma das personagens da fotografia de José Manuel Rodrigues (Sem título, 2017) – mais do que o parece fazer a pauta cromática de Palolo.
Há jogos mais venturosos do que outros: o vestuário desestruturado por Jimmie Durham (Quem Disser, 1995) e por Sara Bichão (Última guarda, 2018) convive num entendimento tácito; as peças de Ana Manso (Thoughts in Córdoba, 2019) e Ana Cardoso (Moléculas [Pterodactylus, Matisse, Etc.]” 2022-2023) alegram-se no seu encontro, apesar da interrupção da entrada (as ombreiras de cada vão do Palácio são elas mesmas peças que se impõem). Mas a tela de Ana Jotta (Untitled, 2022) agradeceria algum contraste que a engrandecesse mais do que a proximidade com a luz que entra pela janela. Também a instigante fotografia/escultura de Hernâni Reis Baptista (Hard copy #6, 2018) emudece, quase despercebida junto ao chão, perante a altivez de Joaquim Bravo. Mais tagarelas são as peças fotográficas de Carlos Lobo, Júlia Ventura, Ricardo Valentim e Patrícia Almeida, que ressoam por todas as salas.
1 Sandra Vieira Jürgens na entrevista com José Pardal Pina para a Umbigo online, em fevereiro de 2023, que pode ser lida aqui.