A pedra tem a boca junto do ouvido
E para dentro de si mesma sem cessar se diz.
Se cair nos olhos
Quebrar-se-á em pranto.
Se rodar no dorso
Vergar-me-á.
Pesa-me no bolso
E na cabeça.
Não é um pensamento.
É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada
Pelo lado de dentro.
Daniel Faria
A pedra aparece recorrentemente na poesia de Daniel Faria, como um objeto inamovível, que na sua serenidade traz consigo a sabedoria das coisas. As suas pedras são sempre objetos mentais, alquímicos, meios estáticos que em ampliadas metamorfoses conseguem traduzir a complexidade da existência. Daniel Faria, à sua maneira, terá sido um homem pedra. Lembrei-me dele ao ver Homem-Menir, a obra que nos introduz à mais recente exposição de Paulo Damião no Museu das Artes de Sintra, As Imagens do Mundo e Outros Enganos com curadoria de Victor dos Reis.
Começar este texto pela abordagem a uma obra diferente, que apenas a minha subjetividade trouxe em relação, terá sido a tentativa de reencenar os propósitos desta exposição: todas as pinturas são reproduções de outras pinturas, imagens de outras imagens; e todas elas encerram a consciência da sua existência, como as pedras da poesia de Daniel Faria. Ainda assim, revelo o meu truque. Já na exposição, as ilusões não querem admitir que o são – a recorrência à técnica perspética do trompe l’oeil faz das obras um simulacro do real, como se astutas, planeando o seu embuste, tornando-as, nestas suas estranhezas, objetos curiosos. Curiosidade que encerra aqui vários sentidos: são obras que, na sua metalinguagem, refletem sobre a sua condição (objetos materiais onde se espelham representações pictóricas): as telas querem ser paredes, onde se projetam outras telas, encastradas na pintura; mas, na sua misteriosa elegância, também desencadeiam um passado percetível, uma história a que gostariam de pertencer – a das ilusões barrocas do séc. XVII, das naturezas mortas e reflexividades em torno da pintura, das primeiras museologias com os seus Gabinetes de Curiosidades assentes em contextos palacianos. Ao lado do Homem-Menir, existe uma pequena réplica da mesma pintura, inscrita numa pequena tela, tentando reproduzir a própria materialidade do papel onde assenta a primeira; encontra-se inscrita sobre uma mesa fina e alta que poderia ser um pedaço de mobiliário, parecendo transpor a obra para outro contexto, o de uma casa, onde somando a um naperon e luz amarela, poderia coexistir como o retrato de um familiar; ainda assim, não se lhe denuncia esse conforto, o homem-menir que se representa parece um vulto assente numa nuvem amarela como um Rothko vaporoso, espectral entre uma abstração e um retrato AI. Estes dois quadros – original e reprodução – assentam sob uma parede azul numa ponta da sala da exposição: para além da consciência de si próprias, enquanto representações humanas parecem vigiar todos os outros objetos que compõem o espaço da exposição, quase uma marca simbólica da presença do artista (ou talvez relembrando-nos do nosso papel de visitantes, como Figuras de Convite que nos acompanham ao espaço).
Compreendendo um canto da sala de exposição, observamos agora pequenas telas e papéis pintados que se aglomeram, querendo desconstruir-se. Representam-se objetos, vestígios, cada um por pintura como que um levantamento de materiais – um osso, um menir, uma folha de papel. O olhar curatorial de Victor dos Reis, também constantemente curioso, procurando sempre um estreitamento de distâncias, resplandece aqui: as pinturas revelam o seu esquema cromático, com várias paletas em séries de 3 cores a exporem-se ao lado das obras – também elas, enquanto tinta sobre papel, poderão ser pinturas. Destaca-se Atelier, onde sob tela, se pintam representações naturalistas de um menir sobre papeis fictícios comparados, ilusoriamente, ao que seria o objeto real exposto numa estante, mas ainda subjugado ao domínio da tinta. Noutra obra, folhas de papel pintam-se numa folha mais grossa que faz meio à pintura – é um papel grosso a aproximar-se do tecido, que simula uma tela ao mesmo tempo que se faz esquadria de obra em construção – debate de formas como um olhar contemporâneo, assumidamente conceptual, às perspetivas de Cornelis Gijsbrechts.
Do lado direito, num conjunto de 5 pinturas grandes, altas, a autorreflexividade dá lugar ao sonho, à difusão. Recupera-se o menir, sempre multiplicado, que na sua repetição começa a assumir-se no seu sentido fálico. Passamos da tentativa de construção de uma materialidade, onde o menir se expõe estranha e deslocadamente sob outra falsa folha de papel, numa sobreposição desorientadora de perspetivas, para desaguar em fundos nebulosos, cenográficos, de uma limpidez alquímica onde, finalmente, o menir se funde com a paisagem, fazendo-se substância.
As últimas secções da exposição recuperam, mais uma vez, as pequenas pinturas, onde sob pequenos papéis se repartem arquiteturas e paisagens de temperaturas diferentes, mas o clímax será num conjunto de seis painéis de papel numa parede fundeira, expostos de modo que os três que se dispõem em cima ocultem parte dos que se mostram em baixo, sobrepondo-se-lhes. A lembrar as primeiras museologias que nas suas aglomerações de obras, lhes retiravam a autonomia individual, esta ideia, ainda que pertinente no contexto da exposição, sempre feita de sobreposições imagéticas (é pertinente aqui a inclusão de Homem sobre Tábuas, representação que se esconde), acaba por ser contrária à contenção meditativa que vimos, deliciosamente planeada, para a cingir a um ato mais gratuito, que retira algo de impossível devolução às obras de arte – o que não é visto nem se poderá ver. Os motivos repetem-se, enigmaticamente, até ao infinito: o menir, o homem.
Tudo aqui fora jogo de esconderijos, tensões – como um progressivo jogo de sedução, onde o que se mostra, dialeticamente, nunca se revela. A verdade escapa-nos pelas pontas dos dedos. Idealista, romântica, reflexiva, a exposição desdobra-se numa segunda parte apresentada na Galeria Arte Periférica no Centro Cultural de Belém. Aqui, termina em azul, tal como a parede em que começou – cor expansiva, contemplativa, contrária aos simulacros ilusórios que se mostraram. Um azul quadrado, agigantado, onde dois retratos e dois paisagens se inscrevem, pequenos como selos. Contém-se em 150x130cm um resumo do que vimos, e que saídos da exposição, acabaremos sempre por ver: uma cosmologia, possível imagem do mundo.
As Imagens do Mundo e Outros Enganos de Paulo Damião encontra-se em exposição no Museu das Artes de Sintra até ao dia 8 de janeiro.