A escolha do Pátio B, aberto e de livre acesso, reforça essa intenção. O que é comum não se tranca. O comum é o idioma dito e preservado, o sopro que atravessa Angola, Brasil e Portugal; é também o solo compartilhado, feito de terra, memória e mar. Por meio de vídeos, esculturas e instalações, o projeto transforma o espaço em uma praça contemporânea, uma ágora de vozes múltiplas. O visitante é convidado a integrar um diálogo que ultrapassa a arte e se aproxima da ideia de travessia e pertencimento.
Mais do que uma exposição, Atlânticos resulta de um convívio. Durante a residência na Fazenda da Serrinha, onde os artistas compartilharam dez dias de escuta e criação, deixando-se atravessar pela paisagem, pelos sons e pelos gestos do outro. Dessa experiência brotaram as obras que hoje ocupam o Museu da Língua Portuguesa.
Os artistas que compõem Atlânticos compartilham ainda um desejo: levar a mostra antes a Luanda, e só depois a Coimbra. Angola, Brasil e Portugal formam aqui três margens que se buscam. A exposição reconhece que a língua portuguesa, mais do que um legado europeu, é uma tessitura mestiça, forjada pela diáspora e pelo Atlântico negro.
Nesse sentido, ecoa uma canção de Caetano Veloso: "gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões, gosto de ser e de estar". A frase não é apenas celebração, mas também consciência. A língua é corpo, é atrito, é contaminação.
Shirley Paes Leme, Inês Moura, Wyssolela Moreira, Jorge das Neves, Jonathas de Andrade e Gegé M'Bakudi apresentam materialidades distintas: vídeo, fotografia, barro, bronze, alumínio e tecido.
Localizadas entre este fluxo, as obras se espalham como uma gramática expandida: um idioma comum tecido entre o chão e o corpo, entre o ferro e a fala, entre Angola, Brasil e Portugal. Mais do que celebrar a língua portuguesa, a exposição investiga seus múltiplos modos de existência — suas encruzilhadas, suas memórias coloniais e suas possibilidades de reinvenção.
A primeira obra que se impõe ao visitante é Escada para o infinito II, de Shirley Paes Leme, construída com gravetos coletados e fundidos em bronze. Dispostas contra a parede, as escadas condensam o gesto de passagem. Dependendo do olhar, são trilhos de trem ou encruzilhadas, evocando o ritmo de quem parte e retorna. A artista transforma o efêmero em permanência e propõe um diálogo com Jonathas de Andrade: ele narra o país a partir da imagem social e política do corpo coletivo; ela pela matéria que resiste ao tempo.
No segundo acesso, Enterolobium, de Inês Moura, apresenta pelintros de tijolos e sementes de tamboril fundidas em alumínio, acompanhadas pela leitura do poema As viagens, de José Tolentino. O trabalho propõe uma arqueologia poética da memória, onde as sementes não são relíquias, mas orações. Acima delas, as cianotipias em tecido de Wyssolela Moreira pairam como mapas suspensos, conectadas por uma rede que faz da língua uma trama de ressonâncias.
Em outro ponto, Jonathas de Andrade apresenta um abecedário que, entre o lúdico e o brutal, revela a tensão entre signo e corpo. Seu trabalho, centrado na extração da cana-de-açúcar, transforma o vocabulário do trabalho em linguagem crítica, reencenando o Brasil pela dureza de sua própria história.
Na entrada principal, pela rua, Você, tu, também, de Jorge das Neves, é um muro de palavras moldadas em tijolos. Literal e simbólica, a obra inscreve a língua no espaço, lembrando que toda arquitetura é também linguagem. Entre o barro e o verbo, a instalação propõe um alicerce comum, o da construção coletiva do idioma que atravessa a exposição.
Por fim, no vídeo de Gegé M'Bakudi, o olhar se volta para o homem e para o que nele foi silenciado. Entre fogo e renascimento, o artista angolano explora o corpo como campo de memória e resistência, repensando a masculinidade como linguagem e não como cárcere. Sua obra é um gesto de cura e de abertura, em que o sensível se torna força política.
A mostra não nasce apenas do gesto de exibir, mas de um convívio. Na Serrinha, os artistas compartilharam dez dias de imersão, trocando práticas, escutas e presenças. Dali, emergiram as sementes que hoje florescem no pátio do Museu da Língua Portuguesa, de livre acesso, aberto à rua. É significativo que Atlânticos aconteça ali, onde os trens e as vozes se cruzam: o espaço da passagem, do comum, do encontro entre o íntimo e o público.
Em tempos de Bienal de São Paulo, cujo tema é a pluralidade, a exposição se insere de forma singular, propondo o mesmo debate a partir de outra perspectiva. Parabenizamos a curadoria pela potência deste encontro, que brota do chão comum e se ergue como celebração das vozes que atravessam o Atlântico. A pluralidade não é conceito, mas prática: está na terra, na matéria e na escuta. As obras e os artistas estão bem intitulados, pois nomeiam o que é preciso nomear. Afinal, a língua também é isso, o gesto de dar nome aos bois.
A exposição pode ser visitada no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, até dia 2 de novembro.