Foi estranho, e quase divertido, sentir algo semelhante ao visitar Sussurro, a exposição de Maurizio Cattelan na Casa de Serralves. Passados muitos anos, experimentei visitar uma espécie de casa assombrada, desta vez habitada não por fantasmas, mas pela história, pelos traumas pessoais e coletivos e, sobretudo, pela presença provocadora do próprio artista. O artista está, de facto, interessado não apenas na história do mundo e das suas feridas, mas também nas nossas histórias individuais, nas nossas transições e nos medos íntimos que moldam quem somos. A exposição desenrola-se como um sussurro: como um fantasma - ou talvez muitos - que nos seguem de perto. Cada obra é concebida para provocar uma reação, por vezes tragicómica, mas nunca indiferente. Cattelan sente-se como uma criança traquina, pregando partidas, empurrando-nos a confrontar os nossos medos com um sorriso irónico.
Em Sem Título (2003), vemos um adolescente a tamborilar ruidosamente, preso num laço mecânico, como um carrilhão monstruoso. É uma imagem hipnótica e perturbadora que nos fala sobre a resistência, mas também sobre a estagnação. Outra peça, Charlie Don’t Surf (1997), mostra um rapaz pregado a uma secretária escolar, olhando fixamente pela janela em direção ao jardim do museu. É uma imagem da adolescência como conformidade forçada, uma espécie de submissão universal. Mais uma vez, o espírito adolescente de Cattelan emerge: desafiante, irónico e, ainda assim, profundamente humano.
Deambulando pela casa, encontramos figuras que se querem esconder, como uma avestruz com a cabeça na areia. Sem título (1997), criado para a exposição Fatto in Italia (1998) (uma tentativa de apresentar um panorama dos artistas italianos contemporâneos e emergentes da época), é uma metáfora clara para a tendência humana de evitar a realidade, de recusar o confronto. Outra figura oculta é o elefante assustado no andar de cima, em Sem Medo do Amor (2000): um literal “elefante na sala”, encolhido, empurrado para debaixo do tapete, absurdo e dolorosamente relacionável.
Suspensa a meio da entrada, entre os dois andares, está uma das minhas obras preferidas de Cattelan: Novecento (1997), um cavalo taxidermizado, pendurado no teto, flácido e indefeso. Enquanto alguém que cresceu em Florença, estava rodeada de estátuas equestres, símbolos de poder, glória e comando. Este cavalo, no entanto, é precisamente o oposto: passivo, vulnerável, quase ridículo. Torna-se uma paródia de heroísmo, um poderoso comentário sobre o fracasso do século XX, um século de promessas quebradas e ilusões desvanecidas. Nesta e noutras obras, vemos claramente o contraste entre Cattelan e o contemporâneo Damien Hirst. Enquanto o artista britânico utiliza a taxidermia de forma filosófica e sagrada, Cattelan enfraquece-a e subverte-a: a taxidermia torna-se uma ferramenta provocadora e irónica, comportando-se como um duende traquina. Penso que não é coincidência que uma das suas obras icónicas de taxidermia se intitule Fantasmas (2011), uma série de pombos taxidermizados colocados no alto, observando silenciosamente os visitantes. Esta peça é outro exemplo do desejo de Cattelan de inverter a percepção: não estamos a olhar para as obras, mas estas estão a olhar para nós. É como se entrássemos numa casa assombrada onde os seus moradores já nos observam, à espera da nossa reação. Em Bidibidobidiboo (1996), encontramos algo ainda mais bizarro e intimista: um cenário doméstico em miniatura, onde um esquilo parece ter-se suicidado. Não temos sequer a certeza se este cenário foi autoinfligido. O conto de fadas quebra-se, o feitiço acaba: a cozinha da Cinderela, pós-desilusão.
Mas não são apenas os animais taxidermizados que assombram a casa. Há também sósias do próprio Cattelan: sósias penduradas (Tu, 2022), com flores na mão (é um funeral ou uma celebração?) suspensas entre identidades. Sósias a partilhar uma cama (Nós, 2010), ou clones em miniatura como Mini Eu (1999). Cada uma questiona a autonomia do artista, esbatendo as fronteiras entre a presença e a ausência, entre a sinceridade e a autozombaria.
A Casa de Serralves, com o seu estilo Art Déco e passado aristocrático, vendida na década de 1950 devido ao declínio financeiro dos antigos proprietários e às mudanças no clima político português, torna-se a casa assombrada contemporânea perfeita: habitada não por fantasmas do passado, mas pelas reflexões e ansiedades do nosso tempo.
A exposição Sussurro pode ser visitada até dia 11 de janeiro de 2026.