Desde que Prometeu roubou o fogo aos deuses, a cremação tornou-se um ritual simbólico de purificação, no qual o corpo é reduzido a cinzas para libertação do espírito. O fogo é, por isso, tanto um elemento associado à destruição como à criação. Gaston Bachelard destaca essa dualidade física e poética do elemento. Se o fogo simboliza - independentemente da distinção entre a chama de uma vela, de uma lamparina ou de uma fogueira - inquietação, ebulição, paixão, sexualidade, também denota destruição e transformação. Ora aquece, protege e ilumina, ora consome. Chamamos fogo à casa onde vivemos, mas também ao incêndio que devasta a mesma casa na floresta, reduzindo-a a nada. Chamamos de fogo à sensação térmica de calor ou excitação, como à combustão que nos queima a carne. Chamamos de fogo à tocha que nos ilumina o caminho às cegas na caverna, como ao sol que nos encadeia à saída. Chamamos de fogo à razão humana, enquanto motor da ciência, e acendemos uma vela para devoção.
A mais recente exposição de Rui Chafes é um desses poemas sobre o fogo que “arde sem chama”, talvez “sem importância nenhuma”, que ganhou forma na forja. São dezanove as esculturas suspensas nas asnas que sustentam o vão da Galeria Filomena Soares. Uma série de peças individuais configura uma topografia de interpretações, que se estende ao título da exposição: Acredito em Tudo. Chafes sugere-nos uma abertura absoluta para o significado que podemos atribuir às esculturas: folhas parecem dançar ao vento; tecidos rasgados movem-se entre ruídos de batalha; estandartes inquietos tremulam como palavras de ordem; mortalhas cobrem hastes e mastros de velas; fitas ardem entre corpos e sombras de outros corpos, dançam no vazio. E tudo parece uma azáfama num emaranhado de lianas. Mas, pelo contrário, tudo está em silêncio, fossilizado pelo tempo e suspenso no espaço climatizado da galeria.
Para desdobrar este novelo, é necessário interpretar as esculturas de Chafes como desenhos. Desenhos tridimensionais, onde as figuras se revelam pelo confronto violento (também físico) entre o carvão e o papel, a luz e as trevas, o claro e o escuro, o cheio e o vazio, o preto e o branco - afirmação que se oferece ao leitor como provocação. Por isso, na galeria, os projetores estão direcionados para as paredes, e não para a superfície das esculturas, acentuando os contrastes entre o que é negativo e positivo. Por isso, as esculturas flutuam elevadas do pavimento e soltas das paredes, convidando o observador à penumbra. Por isso, as esculturas estão desviadas do seu eixo, tão leves que se mostram. E também por isso, a direção dominante do olhar é vertical, evocando uma esfera sacral - que nos transporta para a experiência fenomenológica do claustro e da catedral.
“I believe in everything, I believe in nothing… I believe in nothingness and in the void.” [2], escreve Rui Chafes no final do texto que acompanha a exposição. E o que parece uma afirmação paradoxal é, no entanto, a chave mestra para abrir estas “caixas de ferro”. Porque o “vazio-positivo” advém do gesto incendiário, estabelecendo tábua-rasa: é uma oportunidade. É estímulo criativo para trabalhar uma matéria-prima do avesso: a antimatéria. No corpo de trabalho de Chafes não parece existir horror ao vazio, porque este apenas existe paralelo ao cheio. Estas 19 esculturas movimentam-se nesse interstício, entre o violento confronto do breu noturno e a primeira luz da alvorada, como sombras da realidade que acreditamos conhecer.
A exposição estará patente até dia 15 de novembro na Galeria Filomena Soares.
[1] CHAFES, Rui; MATOS, Sara Antónia. Rui Chafes, sob a pele… Conversas com Sara Antónia Matos. Lisboa: Documenta, 2015, p. 19.
[2] “Eu acredito em tudo, eu não acredito em nada… Eu acredito no nada e no vazio.” – tradução literal a partir do original.