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Rui Chafes: dezanove eixos para acreditar no fogo
DATA
28 Out 2025
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AUTOR
Frederico Vicente
“Rui, o que tanto escreve nos seus papéis, essas folhas soltas, pequenas, que tira do bolso e enche de palavras?
Segredos. Escrevo segredos, depois queimo-os e guardo as suas cinzas em caixas de ferro. (…) Mas estas palavras escritas, que não têm importância nenhuma, acabam quase todas na fogueira. Sempre acreditei no fogo.“ [1]
Desde que Prometeu roubou o fogo aos deuses, a cremação tornou-se um ritual simbólico de purificação, no qual o corpo é reduzido a cinzas para libertação do espírito. O fogo é, por isso, tanto um elemento associado à destruição como à criação. Gaston Bachelard destaca essa dualidade física e poética do elemento. Se o fogo simboliza - independentemente da distinção entre a chama de uma vela, de uma lamparina ou de uma fogueira - inquietação, ebulição, paixão, sexualidade, também denota destruição e transformação. Ora aquece, protege e ilumina, ora consome. Chamamos fogo à casa onde vivemos, mas também ao incêndio que devasta a mesma casa na floresta, reduzindo-a a nada. Chamamos de fogo à sensação térmica de calor ou excitação, como à combustão que nos queima a carne. Chamamos de fogo à tocha que nos ilumina o caminho às cegas na caverna, como ao sol que nos encadeia à saída. Chamamos de fogo à razão humana, enquanto motor da ciência, e acendemos uma vela para devoção.  
A mais recente exposição de Rui Chafes é um desses poemas sobre o fogo que “arde sem chama”, talvez “sem importância nenhuma”, que ganhou forma na forja. São dezanove as esculturas suspensas nas asnas que sustentam o vão da Galeria Filomena Soares. Uma série de peças individuais configura uma topografia de interpretações, que se estende ao título da exposição: Acredito em Tudo. Chafes sugere-nos uma abertura absoluta para o significado que podemos atribuir às esculturas: folhas parecem dançar ao vento; tecidos rasgados movem-se entre ruídos de batalha; estandartes inquietos tremulam como palavras de ordem; mortalhas cobrem hastes e mastros de velas; fitas ardem entre corpos e sombras de outros corpos, dançam no vazio. E tudo parece uma azáfama num emaranhado de lianas. Mas, pelo contrário, tudo está em silêncio, fossilizado pelo tempo e suspenso no espaço climatizado da galeria.
Para desdobrar este novelo, é necessário interpretar as esculturas de Chafes como desenhos. Desenhos tridimensionais, onde as figuras se revelam pelo confronto violento (também físico) entre o carvão e o papel, a luz e as trevas, o claro e o escuro, o cheio e o vazio, o preto e o branco - afirmação que se oferece ao leitor como provocação. Por isso, na galeria, os projetores estão direcionados para as paredes, e não para a superfície das esculturas, acentuando os contrastes entre o que é negativo e positivo. Por isso, as esculturas flutuam elevadas do pavimento e soltas das paredes, convidando o observador à penumbra. Por isso, as esculturas estão desviadas do seu eixo, tão leves que se mostram. E também por isso, a direção dominante do olhar é vertical, evocando uma esfera sacral - que nos transporta para a experiência fenomenológica do claustro e da catedral.  
“I believe in everything, I believe in nothing… I believe in nothingness and in the void.” [2], escreve Rui Chafes no final do texto que acompanha a exposição. E o que parece uma afirmação paradoxal é, no entanto, a chave mestra para abrir estas “caixas de ferro”. Porque o “vazio-positivo” advém do gesto incendiário, estabelecendo tábua-rasa: é uma oportunidade. É estímulo criativo para trabalhar uma matéria-prima do avesso: a antimatéria. No corpo de trabalho de Chafes não parece existir horror ao vazio, porque este apenas existe paralelo ao cheio. Estas 19 esculturas movimentam-se nesse interstício, entre o violento confronto do breu noturno e a primeira luz da alvorada, como sombras da realidade que acreditamos conhecer.
A exposição estará patente até dia 15 de novembro na Galeria Filomena Soares.

[1] CHAFES, Rui; MATOS, Sara Antónia. Rui Chafes, sob a pele… Conversas com Sara Antónia Matos. Lisboa: Documenta, 2015, p. 19.
[2] “Eu acredito em tudo, eu não acredito em nada… Eu acredito no nada e no vazio.” – tradução literal a partir do original.
BIOGRAFIA
Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.
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