O primeiro contato que tive com a obra de Guto Lacaz foi recente. Visitar a sua retrospetiva que terminou recentemente no Itaú Cultural, em plena Avenida Paulista, era como que entrar numa montanha russa, num parque de diversões. Algumas das obras expostas eram ativadas pelo observador, e o percurso apelava a um movimento como se de uma máquina se tratasse. Muitas das suas peças causavam uma sensação vertiginosa, como numa viagem ao cume da montanha, antes da queda e do ponto de gravidade zero. Ao mesmo tempo que se reconhece o seu universo de objetos utilizados, Guto retira-nos aparentemente esse chão, causando surpresa e estranheza, ao suprimir a função primordial desses objetos. Um exemplo muito claro disso é a peça que inclui uma lata de azeite da marca Maria e uma antena que gira em torno de uma bandeja – Óleo Maria à procura da salada –, ostentando a sua antena num quase desespero alienante.
A exposição continua pelos dois pisos principais do edifício: o superior com obras de maior dimensão; o inferior com pequenos objetos, cuja função é reinventada pelo artista. A exposição despertou ideias inspiradoras, talvez a melhor sensação que se possa ter quando se sai de uma exposição.
É certo que o seu trabalho tem qualquer coisa de comum ao movimento dos artistas cinéticos, mas a maior peculiaridade de Guto é a de ter escrito um artist statement: a grande diferença do seu trabalho para com a maioria dos autores que trabalham com objetos do quotidiano é o facto de ele viver como um humano-objeto.
Após a visita ao Itaú Cultural, passado um mês, aquando da inauguração da Sala do Cultura Artística (edifício histórico que esteve em prolongada manutenção e que reabriu ao público com uma programação musical, por vezes protagonizada pelos artistas residentes), conheço Guto Lacaz, a quem me dirigi felicitando-o pela retrospetiva do seu trabalho. Com estes dois encontros, o primeiro na sua exposição, o segundo pessoalmente, tornou-se fundamental visitar o seu ateliê, com o objetivo de compreender melhor o seu trabalho.
A caminho da sua casa-estúdio, que se encontra no Jardim Paulista, chegamos a um espaço sem serviços, restaurantes ou lojas, maioritariamente residencial, com o silêncio necessário para Guto trabalhar. Depois de um pequeno atraso, Guto lançou uma piada sobre essa espera, o que iniciou uma conversa bem-humorada que muito o caracteriza a si e à sua obra.
Guto fala maravilhado sobre o seu percurso, como uma criança que partilha a sua estória. Era um grande privilégio estar ali, com a sua generosidade aliada à longa experiência como artista. Guto formara-se em 1974 como arquiteto, disciplina que exercera durante os primeiros quatro anos, depois da conclusão dos seus estudos. Questionado sobre qual a sua relação com Le Corbusier e o conceito de “máquina de habitar”, Guto direcionou a conversa para o seu único projeto na América Latina, a casa Curutchet, em La Plata, na Argentina. E enquanto admirávamos a casa do arquiteto francês, Guto referiu a Europa, por ter feito uma visita a Portugal, em 2011. Referiu que não teve muito contato com a arte contemporânea e que lhe interessou mais o passado que o presente.
Neste ziguezague, a conversa remeteu à sua infância, período em que desmontava brinquedos e cultivava um amor pelas máquinas. Sendo muito curioso desde pequeno, colecionando presentes dos amigos dos pais, Guto desmontava as máquinas e todo o tipo de objetos eletromecânicos, para assim desenvolver uma relação profundamente autodidata com esse universo.
Longe da possibilidade de um dia ser artista, a certo momento ainda trabalhando em arquitetura (1978), deparou-se com um cartaz para um concurso chamado “Objeto inusitado” e concorreu. Tendo integrado a exposição-concurso sem esperar, foi publicado um artigo na Veja sobre esse seu trabalho, à época a revista mais relevante no circuito da arte contemporânea. Esta publicação dividiu Guto Lacaz. O que fazer no futuro com o material artístico que tinha reunido? Seria essa a sua verdadeira vocação? Depois de se aconselhar com os seus pares, constatou que seria necessário investir num ritmo e método de trabalho regular em resposta a esta crescente e futura possibilidade.
Tratava-se de um acidente feliz que lhe mudou radicalmente a vida e se intensificou fortemente nos anos seguintes. Nesse mesmo período (1978) deparou-se com a obra de Dudi Maia Rosa no MASP que o marcou (artista que apresentou um duo show em São Paulo com Anderson Borba e que tive a oportunidade de ver no espaço Auroras). Este trabalho conduziu Guto a integrar as oficinas de Maia Rosa, tanto em gravura de metal como na cerâmica. Foi na verdade em conjunto com a comunidade artística que se fez a sua aprendizagem. Ver o que os outros colegas faziam acabou por traçar também o seu caminho.
Guto relembra com lucidez que em 1979 assistiu a uma performance na Pinacoteca do artista José Alberto Aguilar, que tinha regressado a São Paulo em 1976 depois de viver em Nova Iorque. Apresentara uma performance ao som do piano em que destruía as letras da palavra ARTE esculpidas em esferovite, sincronizado com o som dessa deterioração.
Passados três anos (1982), Guto entendeu a sua verdadeira paixão - a performance! Convidado por Ivo Granado a fazer um ato performativo de um minuto juntamente com outros cinquenta e nove artistas, no Centro Cultural de São Paulo, estreou essa sua linguagem. Interessava-se em mexer com objetos, criar cenas e transgredir o seu uso. Fascinado com a reação pública ao imediatismo do momento, mexia com os seus sentidos e “tocava-lhe na barriga”.
Guto obteve um palco significativo em diversas e emblemáticas performances. As apresentações de Eletro performance, construindo um cenário de objetos que configuravam o palco partilhado com Cristina Mutarelli, destacavam-se pela sua cadeira elétrica, num modelo continuamente aprimorado. A ação principal dessa performance consistia no artista passear uma lâmpada tubular sobre as mãos ao longo de uma outra luz sob seus pés que irradiava na sua perpendicular.
Guto anseia por repetir algumas destas performances; quem sabe no ano de 2025 haverá nova calendarização da Eletro performance.
No momento em que a conversa termina, seguiu-se um pequeno silêncio que criou uma certa expectativa. Guto levantou-se e dirigiu-se pelo caminho do jardim das traseiras da sua casa, em direção ao ateliê, que se via de fora pelas janelas transparentes. O seu local de trabalho tinha mesas de carpinteiro e maquinaria usadas constantemente. No lado direito, ao fundo, tinha uma pequena sala onde armazenava a sua obra. Por cima, um mezanino com telas, umas que abandonou, outras que pretende retomar.
O fim desta visita aproxima-se, à medida que os pássaros cantam. Contemplo este espaço precioso uma última vez. Aqui, a vontade de criança – o pequeno Augusto que desmontava os mesmos brinquedos – mantinha-se viva. O sossego do lugar dilui o barulho das máquinas que, no centro da cidade de São Paulo, se encontram em constante movimento.