Há uma certa matéria ou energia que liga a universalidade, e essa é habitada no vazio. Contudo - e assim proferem os mitos gregos - é graças a esse aparente vazio que se gerou a união entre Gaia e Urano, que é outra forma de dizer, entre a Terra e o Céu. Porém, a constituição da dualidade estabelece-se entre a invisibilidade e essa tal materialização. Essa união entre o céu e a terra, de forma descomplicada, é o ser no intermédio do divino e do humano, talvez por outras palavras, uma convergência ou conciliação do Celestial e do Terrestre.
Quando a madrugada chega, além da geada que se dissolve com a perfuração da luz, que rompe ao longo de todo um espaço terreno a escuridão, que outrora habitou, a folhagem deixa escorregar a água, que cristalizada, agora estende-se ao perfurar por entre o solo. Logo que na montanha, aquele que conduz deixa o seu cântico abrir o espaço de ar livre para conduzir o caminho. Somos invadidos pelos tons do nevoeiro, o interceder da luz, que deixa prolongar nesse aparente vácuo o chamamento, dos sinos e dos poemas, das confissões dos espíritos. No entanto, contam que esses cânticos e essas vozes devem e são proferidas sobretudo no exterior. E, tal como a performance que Catarina Domingues e Ricardo Ribeiro inauguraram, foi preciso segui-los em passos lentos, além do cimo das escadas em direção ao interior. O ato do corpo produziu e seguiu a música nos seus movimentos. As pinceladas preencheram o branco de negro nas folhas, os berlindes fizeram-se rolar e partirem o som ao chão. Num tal ritual, quase peregrinação, onde fomos servidos pela sedução da composição melódica e física que o corpo despertou, com os sinos seguros em seus braços, às suas declarações e “Irradiações” sobrepostas dos dois sentados em frente um ao outro.
A Série Infinita, a Escandecida, projeta ao longo de desenhos consecutivos as breves iluminações que inevitavelmente brilharam nesse vazio. A abertura ao infinito que acontece nele, ou melhor dizendo, como no Caos1, evoca a fecundidade da matéria eterna. As manchas de tinta-da-china diluídas em água, provocando a quebra da negridão, aparentam criar orifícios, remetentes à abertura onde o ser nasce e nele se concebe. As linhas negras que cobrem as manchas dão credibilidade à existência. Algumas penugem, outras corpo, formas simbólicas, como círculos. Pequenos apontamentos de pequenos pontos, sementes e infinidades que nascem com a fertilidade do escuro, onde a luz se projetou.
Ainda assim, nesse Caos, nessa negridão onde se cria luz, nessa terra onde a erva se arrebita para chegar mais ao céu, ao sol, ao calor, na madrugada onde o cinzento percorre entre nós, concebemos que a dualidade do claro/escuro, feminino/masculino, própria da criação, é a complementariedade entre a vida e a morte, entre o prazer e o luto. As Camélias perderam a sua cor, descansam entre o tempo, e, de alguma forma, trazem para a exposição, como um apontamento no seu percurso, a lembrança desse luto, ou, noutro sentido, da efemeridade da própria existência. As obras intituladas Heranças Íntimas também guardam em si, como pequenos artefactos, o lugar de onde a obra veio e foi feita. São as testemunhas do desenho, do tacto, dos lugares reais e da dureza credível do encanto espiritual, abstrato e, podendo um assim dizer, da tinta. Os chocalhos na parede, a marca do movimento e do som, a pedra sobre a cadeira, uma concha suspensa, aquela que chama a motilidade da água.
Todavia, se todo o solo é terra, pedra, dureza, substância, masculino, este contenta-se e pede para ser regado. A repetida contrariedade e o suplemento designam-se na água. Os dois garrafões, um cheio de terra e um cheio de água, expostos no piso superior, são a fermentação dos grandes e suspensos desenhos que os acompanham. O negro, que antecipa a criação, a escuridão que na sua fecundidade iluminou o universo e possibilitou a vida, contém em si algo como o Eros, um vigor irresistível à multiplicidade, um fluído, uma influência tão potente, que é invencível o querer do desejo e da criação. O inevitável caso amoroso que surge entre o corpo, e que surge entre a terra e o céu.
Uma contraposição ou discordância que provoca excitamento uma na outra é remetente ao pensamento. O duro e o negro, com a fluidez e uma estranha opacidade traslúcida da água, o contorno que constrói e fica, com o moldável e húmido, o quente com o frio. As manchas de um buraco negro onde tudo corre nas obras Celestial Terrestre. Estas parecem remeter para imagens microscópicas da fecundação. Todavia, também trazem uma noção abstrata ou espiritual sobre o cosmo, um novo nascimento ou uma origem infinita. Assim como a sua forma circular, de continuidade e expansão. Uma relação física e divina, onde o Eros, a concupiscência do solo e da água, do amor, opera, nesse singular abismo de aparente obscuridade. A natureza, e esses seus integrantes, - terra e céu - são um fruto da presença, da rebentação da luz na escuridão, do negror da tinta, de um espaço vasto onde também nascem as novas formas e as linhas.
Neste sentido, a relação da existência parte da criação espiritual, da luz divina que resume o celestial, mas essa é a consciência de uma duplicidade ou de um todo humano que é firme como o solo, terrestre e físico. Na realidade, há uma harmonização, uma energia ou “sopro vital”2 que flui entre nós. Tal como o celestial e o terrestre, uma comunhão palpável e atinente ao espírito.
“Foi então que entrei na floresta da montanha e observei a sua natureza celestial.
Apareceu um tronco perfeito!
E vi nele o suporte dos sinos completo.
Só depois disso apliquei as minhas mãos a trabalhar no tronco.
Se não tivesse sido assim, teria desistido.
Por isso, o que fiz foi ajustar o celestial ao celestial.
E é essa a razão por que as pessoas se perguntam
se um espírito terá participado na minha obra.” 3
A exposição Celestial Terrestre da artista Catarina Domingues está patente na Casa das Artes Bissaya Barreto até 5 de outubro.
1 Caos. (gr. Khaos). Mit.(Filho de Cronos e pai de Érebo e da Noite). Personificação do espaço vazio, o abismo, espaço expandido e indeterminado, como era antes da criação.
2 Chuang Tse. Chuang Tse. Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2017. (pág. 134)
3 Ibid., (pág. 128)