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O rasto do processo: A união das coisas desiguais, de Paulo Brighenti
DATA
01 Out 2025
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AUTOR
Ana Isabel Soares
No tocante texto da folha de sala desta exposição (a que deu o título "O coração pode abraçar"), Óscar Faria associa o carácter “profundamente espiritual” da obra de Paulo Brighenti (1968) à localização do ateliê do artista em Maceira, Torres Vedras, perto da natureza, “próximo de vinhas, moinhos, cercais, matagais, serras e florestas”. A causalidade sugere que a presença material de elementos naturais interfere positivamente, pelo menos naquilo que a arte permite demonstrar, na elevação da espiritualidade.
Mas não é curto, nem de percurso imediato, o caminho desde as presenças que habitam o lugar do artista até que possam habitar o lugar da arte. Aliás, conforme escreveu Denis Diderot na sua Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam, de 1751, “O pincel só demoradamente executa aquilo que o olho do pintor abarca de um só golpe” – e, assim, pode imaginar-se Paulo Brighenti a abarcar com o olhar, através de uma janela do seu ateliê, as folhas de um ramo a sair do tronco de uma árvore; pode imaginar-se a transfiguração que, a partir do olhar mental, projeta enquanto modo artístico; e a sua concretização, em obra de arte, em coisa que possa ser mostrada, por exemplo, nas paredes de um museu.
Trocando por outras as palavras do pensador francês setecentista, existe uma diferença dificilmente ultrapassável entre o momento da contemplação da natureza e a sua transformação em matéria de arte. (Há que atentar, ainda, na metonímia que sugere que o “pincel” de Diderot seja entendido como correlato de “artista”, ou, melhor ainda, de “processo criativo”.) A natureza do lugar que a Brighenti é familiar toma diferentes expressões, consoante seja o momento em que é vista ou aquele(s) em que o artista a transpõe para o seu trabalho. Note-se como “transpor”, aqui, não é metáfora: a primeira das peças que até 12 de outubro se exibem no Museu Municipal de Faro é construída em torno da concha de um grande búzio, que o artista trabalha desde 2017. Na sua forma inicial, Brighenti chamou-lhe, não por acaso, “pai”. A que agora se mostra em Faro é uma de três peças idênticas (as outras integram coleções da Câmara Municipal de Lisboa e da PMLJ) e foi rebatizada para a presente exposição: chama-se agora Com todos os sentidos em silêncio e o título atual denota uma atitude meditativa, que, porventura, poderia culminar na transcendência da materialidade, na profundidade espiritual a que alude Óscar Faria.
De certa forma, li A união das coisas desiguais como o resultado de um labor que tem por destino encurtar a distância entre os gestos do olhar para o mundo e a demora da criação artística a partir desse mundo (o tempo do olho vs. o tempo do pincel). A tela que se vê frente à entrada, Sopro – de uma série que apresentou em duas das suas exposições mais recentes, na Galeria Belo-Galsterer em 2022 e na ARCO em Madrid em 2023 –, está fixada à parede apenas nos extremos superiores: do meio para baixo, vai enrolando, solta, para revelar o seu avesso. Permite, assim, perceber transparências, vazios deixados no linho pela encáustica, brilhos que se fixam entre cores sopradas do óleo. Toda ela é vestígio de um movimento que nela perdura e de que a ondulação dos tons, assim como as impressões dos dedos (do artista?), suspende a sugestão. Nada se oculta do processo criativo, e o peso dos quatro metros por mais de dois transforma-se num véu de tule que se afasta dos olhos para entrever o que o olhar do artista percebeu. Se a matéria se demora na expressão das impressões, da memória, do pensamento, revelar essa duração corresponde a trabalhar sobre a durabilidade do próprio mundo enquanto existência material – e, nesse trabalho, abrir ao espírito a possibilidade. Se cada mão destruída (os dedos caídos, cortados, decepados, das duas esculturas-mãos) o é por efeito do tempo, por natural abandono aos elementos, é dessas mesmas mãos que se desprendem formas escultóricas construídas, ramos não de casca e seiva, mas de cobre. Nestas peças, o “pincel” é cimento, pigmento e chapa de cobre, mas é igualmente a palavra com que se desenham os títulos destas peças, versos de um poema que repercute um pensamento, uma modulação do espírito: “A flor que abrir és tu, o teu pulso e a tua boca”; “O barro do poço, o poder da vegetação, a mão do dilúvio, entra por mim”. Poderia pensar-se em pintura e escultura como coisas desiguais; nesta exposição, porém, os processos escultóricos mimetizam os pictóricos (tal como o inverso se verifica), na medida em que todas as peças registam o tempo da sua gestação, quer enquanto materialidade (a degradação das formas de cimento que são as mãos ou da de terracota que envolve o búzio), quer enquanto espiritualidade – por apontarem a um plano superior, através dos títulos referidos e dos elementos iniciais (“Tapete de oração”) dos títulos das três telas de linho que confluem para a derradeira, instalada no lugar do altar (recorde-se: a exposição visita-se na antiga igreja do convento quinhentista de Nossa Senhora da Assunção): “Tapete de oração: eu, tu, a distância do sono”.
Entre as técnicas utilizadas nestas telas, Brighenti recorre à raspagem, à corrosão (numa das imagens publicadas pelo artista no seu perfil do Instagram, pode ver-se uma tela pintada exposta ao vapor de um ferro de engomar) e à encáustica, à gravação por fogo, adensando ou rarefazendo camadas à semelhança de uma escultura em plano, em pano. A união das desigualdades corresponde a um nome (o “teu”, imagem feminina que surge no quadro à esquerda de quem entra e se assemelha, à distância, a um pequeno ícone; o da segunda pessoa implícita em tantas das obras do autor). Mas as coisas desiguais estão para lá do que representa a figura de um outro no plano material e cada peça exibida assume essa distância – não enquanto lamento pela sua intransponibilidade, mas antes como princípio, como condição de existência, de disponibilidade da natureza à transposição artística. As coisas desiguais podem ser o momento em que o artista olha e a acumulação, prolongada, dos instantes em que o seu olhar se transforma em arte.
Com curadoria da galeria ARTADENTRO, a exposição A união das coisas desiguais está patente no Museu Municipal de Faro até 12 de outubro de 2025.
BIOGRAFIA
Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.
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