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Cinzento/Grey/Gris, na Galeria Vera Cortês
DATA
20 Fev 2025
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AUTOR
Maria Brás Ferreira
Estar na exposição de Ignasi Aballí é como voltarmos ao momento em que os olhos abrem pela primeira vez e somos obrigados a organizar o mundo já existente e, ao mesmo tempo, a lidar com o vazio em torno daquilo a que chamamos casa: olhar a linguagem como sonho concreto demais para ser aleatório, insuficientemente concreto para ser legenda.

Cinzento/Grey/Gris, de Ignasi Aballí, patente na Galeria Vera Cortês, em Lisboa, mais do que nos convidar a fruir de uma experiência estética, de pura contemplação, incita ao desenho de uma geometria espacial que nos (re)configura enquanto elementos compositivos de um espaço plural. Se vemos janelas de cor, tornamo-nos janelas de cor. Se testemunhamos carimbos tipográficos com a palavra cinzento escrito em várias línguas, tornamo-nos missivas a reproduzirem-se por geografias imprevisíveis. Se vemos recortes de jornais misturados com definições poético-dicionarísticas de cores, somos já a notícia de uma nova incidência de luz. A sermos justos, há que dizer da coincidência entre o apelo contemplativo que toda a obra de arte acarreta — o olhar tentado — e a componente arquitectónica, a partir da qual os visitantes desta exposição se tornam elementos activos no modo como aquele lugar é vivido e/ou habitado e habitável. Aliás, dizer o modo como algo é significa imediatamente dizer o modo como ainda não é e pode vir a ser. Digamos que, a partir de esquemas cromáticos, Aballí nos apresenta os termos e condições para habitar o mundo — composto por aquelas cores e outras que serão justamente um intervalo de luz, uma distracção de todos os átomos além daqueles envolvidos na formação da nova cor, e o precipício de desejo daquele que olha.

A babilónia contida no título da exposição não é mais um sinal de diferença do que de ecos, no preciso instante em que um som se encontra com outro, análogo, resultando desse ressoar a abertura para o diverso, o nunca antes escutado ou visto. O mais impressionante é que nunca esta diferença parte para o lugar tantas vezes viciado e autista do chamado exótico, que, em vez de deslocar a atenção para o que é estranho, se compraz na confirmação de uma suposta identidade e de um lugar de privilégio, resultando em gestos condescendentes. Subitamente — e surpreendemo-nos a nós mesmos nesse espanto — apercebemo-nos que essa diferença e, logo, esse apelo de um cruzamento, de um experimento, tinha estado sempre lá. Em potência, cuja ideia, veja-se, não se restringe aqui a um valor positivo, de expansão alternativa do mundo tal como o conhecemos. A potência significa depararmo-nos com a nossa imagem, nela perscrutar outras formas, rostos outros e, por vezes, não conseguirmos sair dessa redoma reflexiva: como essa série de quadros que apresentam uma legenda gradualmente apagada pelo escurecer da tela sucessora, até irmos dar a nós mesmos, à nossa imagem em espelho. E aí Aballí não podia ser mais claro: ele espera que nós sejamos capazes de sermos vistos, de nos encararmos como forma testemunhada, um sinal de distância e possivelmente um farol ou uma bússola avariada; avaria que, todavia, permite que os outros nos incluam na sua cartografia privada, que queiram chegar até nós e vice-versa. Por outro lado, o artista propõe uma espécie de propriedade comutativa da visão: se um desaparece, o outro aparece. A sombra de um dá o recorte aureolar de outro. Ademais, a obliteração de formas rumo à nitidez da nossa imagem em espelho concentra uma síntese do poder do olhar, enquanto operador democrático de transmissões, na medida em que, pelo nosso reflexo, somos obrigados a reconhecer-nos enquanto corpo estranho, signo alheio, movimento incerto. A visão dá-nos a nossa vida como um lastro em extinção, de que não somos mais donos do que os outros por que passamos na rua, todos os dias, e cujo nome não chegamos a conhecer. A designação ou código para cada tom de azul ou castanho ou cinzento é o elogio e a elegia do que não conhecemos, das mensagens extraviadas e das paredes erguidas que não chegam a suportar um tecto. Trata-se de um modo de expor, no verdadeiro sentido da palavra: enquanto arqueologia e golpe mágico, o arquivo como o acto de um louco apaixonado que regista as suas fantasias a partir de detalhes mínimos da realidade. Enfim, o cientista que constrói o seu romance e nos chama a todos para o seu laboratório alquímico.

Na belíssima folha de sala, de Maria Azparren, a autora alerta-nos para o facto de ser um tipo de cinzento, Eigengrau (“cinzento intrínseco” em alemão) a primeira cor que vemos quando nascemos. Cor essa que será recuperada a cada vez que fechamos os olhos para de novo abri-los. Assim, o olhar opera renascimentos múltiplos todos os dias, tendo em conta que em média um ser humano pisca os olhos 28 000 vezes a cada 24 horas. Trata-se de uma exposição umas vezes sóbria e quase friamente arquitectónica, outras vezes propiciadora de sensações próximas da alucinação — por alguns momentos senti a visão desfocada, à medida que procurava a semelhança entre um e outro tom, sem nunca chegar a estar certa acerca dessa relação. O desejo e o mistério levavam pois à formação de uma imagem fantasiada, com a franqueza de se fazer erguer como um painel turvo, permeável a outras formas, a outras películas e outros sentidos. Estar na exposição de Ignasi Aballí é como voltarmos ao momento em que os olhos abrem pela primeira vez e somos obrigados a organizar o mundo já existente e, ao mesmo tempo, a lidar com o vazio em torno daquilo a que chamamos casa: olhar a linguagem como sonho concreto demais para ser aleatório, insuficientemente concreto para ser legenda. Antes demais a arte como (o) regresso (do) poético.

A exposição está patente na Galeria Vera Cortês até dia 8 de março.

 

Maria Brás Ferreira não escreve ao abrigo do AO90.

BIOGRAFIA
Mestre em Estudos Portugueses, com a tese “Modos de Cindir para Continuar: uma leitura de A Noite e o Riso e Estação, de Nuno Bragança”, pela Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a tirar o doutoramento, preparando uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (2020) e Rasura (2021). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.
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