O edifício em Belém, antigo Pavilhão Azul, renovado por um projecto do arquitecto João Luís Carrilho da Graça, é todo pintado de branco e dá, ao rio, uma fachada em que algumas janelas estão tapadas, reproduzindo a mesma cor do edifício. Um bloco de claridade, um espelho de luz que reflecte, ilumina e/ou ofusca. A entrada é lateral. Talvez seja esse o ângulo mais interessante, aliás, para pensar metaforicamente a própria condição do artista coleccionador: aquele que se torna, mais do que tela, quadro, ecrã, o projector de histórias igualmente constitutivas da sua obra. A generosidade constitutiva do criador. A esteira incomensurável do seu ofício. O mistério do seu aparecimento e do seu rastro.
O espaço, sob direcção de Isabel Carlos, visa constituir-se plano de diálogo entre artistas de diversas proveniências, de resto, rimando com a obra multifacetada de Sarmento. A primeira exposição, Take 1, com curadoria da directora, e tomando o léxico cinematográfico de empréstimo para título, reúne obras de vários artistas, portugueses e estrangeiros, distribuindo-se a mostra por três pisos. No rés-do-chão, pintura, fotografia, escultura e um espaço amplo de permeio apresentam uma configuração museológica que faz dos objectos artísticos elementos de um caminho a percorrer, participantes da habitação de um lugar e da experiência sensível do espaço. Logo na primeira galeria, a obra de Robert Morris, Untitled ´76/Felt (1976), alia simetria e escuridão, desenho gráfico e corpo, traço e textura: a peça poderia apresentar-se como sendo a planta ou o rascunho de qualquer elemento a edificar, por nascer. Por outro lado, o negro do feltro devora qualquer lógica que não seja uma puramente contrastiva, feita de tensões com o espaço em que é exposta, parecendo definir-se mais pelo que o toca, do lado de fora, do que propriamente por aquilo que contém. Os elementos coloridos estão, curiosamente, no chão, na forma de dois tapetes, de David Hockney um, de Richard Long outro.
A imersiva frieza laminar da primeira galeria — orientada pelo tópico da arquitectura — é contrabalançada pela câmara escura, no andar inferior, composta por um filme de Marina Abramovic, Dragon Head 6 (1986), fotografias da artista por Paolo Canevari, e Pozo II (2011), de Cristina Iglesias. Aí é a um tempo mítico que se regressa, a consciência de uma memória antiga patente na renovação das escamas da serpente que enlaça o pescoço de Marina no vídeo, a passagem do tempo como substância singularmente experienciável na subida e na descida das águas do poço, cujo fundo assume a forma de um pressentimento, quase-presença. E a espera: da alteração expressiva de um rosto, no vídeo de Abramovic, e da nova visão da pedra sobre e sob águas. No fundo, eis o regresso ao tempo das figurações, dos sinais da ligação ao poderoso desconhecido matricial.
No primeiro piso, algo como uma correspondência privada é mapeada pela presença de retratos de Julião Sarmento feitos por amigos, de entre os quais se contam peças de Fernando Calhau, Joseph Kosuth e Miquel Barceló, entre outros. A diversidade das peças, a distribuição destas pelo espaço do pavilhão — na casa-de-banho o sabonete com uma lâmina aplicada, de Susana Mendes Silva — faz dos objectos artísticos elementos, mais do que potencialmente compositivos de um território quotidiano e familiar, componentes de um mundo encantado, a partir de cujo testemunho deixa de fazer sentido distinguir uma vida dita verdadeira dessa outra vida criada, dado que um e outro plano cruzar-se-ão no espelho vivo do desejo. Take 1 coloca-se à margem de qualquer pretensão historicista sobre a obra de Julião Sarmento, abordagem que tantas vezes se debruça sobre as obras esquecendo-se, afinal, de nelas atentar, refém de todo um aparato crítico, de toda uma tradição e genealogia a que supostamente deve uma corroboração reincidente, citativa.
Um pouco como o coleccionador de mistérios do conto Objectos Sólidos, de Virginia Woolf, que se obstina na procura de objectos estranhos — acidentes ilocalizáveis como narrativa a rastrear, presença sim de matéria nova a criar-se —, nesta exposição testemunhamos a franca admissão de que tudo quanto um artista toca é, desde logo, uma missiva recebida de outra parte. A impossibilidade de determinar absolutamente o nascimento das formas artísticas torna-as permeáveis a infindas combinações, às quais preside o desejo de juntar, de tocar, de provocar atrito, de ter por matéria-prima o incontornável, conquanto assombroso, mistério do corpo e suas correspondências.