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Amor firme. Tão doce que até consola
DATA
19 Fev 2025
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AUTOR
Maria Inês Augusto
Inicio este texto sobre Retomar o Passo — a primeira exposição individual de Luísa Salvador na Galeria Foco — com Caligrafias do Deserto (2025), obra onde me vi submersa em palavras, num tempo suspenso, sem coordenadas.

Inicio este texto sobre Retomar o Passo — a primeira exposição individual de Luísa Salvador na Galeria Foco — com Caligrafias do Deserto (2025), obra onde me vi submersa em palavras, num tempo suspenso, sem coordenadas.[1] Cem peças distribuem-se na parede curva do piso inferior, formando uma composição visual onde a insistência da palavra escrita gera um sentido de permanência paradoxal, em que a passagem do tempo se torna esquiva, lenta, confundindo a percepção. São palavras repetidas num ritmo que se inscreve como um mantra silencioso, apontadas ao longo de cem dias num caderno-diário que antecede esta exposição[2], que se estendem para lá da sua função semântica e se tornam matéria plástica, rasto de um gesto íntimo. Sob tons terra, a escrita desenha um percurso sensível que percorremos, um arquivo de memórias e ideias que persistem.

Na prática artística de Luísa Salvador, a memória é tema recorrente. Manifesta-se como campo sensível, onde o passado e o presente se interseccionam numa investigação poética que se dissolve e ressurge em diversos formatos. Nesta exposição, o nosso corpo imobiliza-se diante de palavras-imagens que adivinhamos guardadas na memória de Salvador, perante ruínas de histórias que a vida permitiu preservar, pulsando entre lembrança e persistência. De vez em quando é preciso dar um passo atrás — para ver melhor ou deixar de ver — depois retomar, mudar de rota, voltar.

A palavra, ao habitar obras como O luto das pedras, A perda irreparável das flores e Se eu fizesse um levantamento das questões (2025), torna-se corpo, traço, cicatriz. Os contornos da escrita emergem do gesto e do pensamento, construindo um ritmo visual que se assemelha a um mapa afectivo, onde fragmentos se acumulam, sobrepõem e, de alguma forma, querem esgotar, na insistência da repetição. Parecem querer encurtar caminho, criar atalhos entre memórias. São o que ficam depois de um sopro, estendem-se para além do suporte e inscrevem-se como vestígios, quem sabe, numa tentativa de eternizar o que teima em ser esquecido — Tão doces que consolam.

A sua prática artística, profundamente ligada à reflexão teórica, é prova do interesse que mantém e que explora entre a representação poética e a natureza. A relação da artista com a geologia remonta à infância e reflecte-se no modo como trabalha a matéria. Os processos que utiliza são pensados como metáforas para a passagem do tempo e para a construção da identidade, parecendo explorar uma escala ampliada da existência. A própria repetição na sua obra – a insistência em percursos, em frases, em trilhos mapeados com gestos precisos e incisivos – assume uma dimensão meditativa, uma tentativa de capturar aquilo que sempre se transforma, mas nunca desaparece por completo. Neste jogo entre o visível e o invisível, Luísa Salvador acciona um outro tempo, mais instável e dinâmico, que não se dá à compreensão linear. A memória e o pensamento não seguem uma trajectória única. Elas contorcem-se, transformam-se, reflectem-se e refazem-se.

No andar superior da Galeria, a sua obra assume uma nova densidade: uma cartografia emocional onde se inscrevem estes vestígios de percursos que lhe interessam. Telas sustentam aquilo que parecem ser montanhas riscadas, num contraste cromático que intensifica a solidez e a resistência do território. Retomar o Passo I, II e III corporizam uma presença quase metafísica, emergindo de um lugar de tensão entre documentação e imaginação. Ao mapear trilhos, ao desenhar superfícies fictícias, riscadas a lâmina com pormenor e movimento[3], a artista torna a paisagem arquivo, testemunho silencioso do carácter não fixo, do que se reconfigura sob o efeito do tempo, da metamorfose. As formas sólidas evocam esta tensão entre permanência e mutabilidade: corpos resistentes à erosão, mas ao mesmo tempo sujeitos às forças que os moldam. São elementos que são símbolos carregados de significado, representando a intersecção entre o natural e o humano e que convidam, como a obra de Salvador já nos habituou, à reflexão sobre nossa própria existência e relação com o mundo natural.

Retomar o Passo é também um gesto de resistência à tentação de chegar. Não há caminhos com destinos, mas ecos, perspectivas, hipóteses de percursos. As obras são como fragmentos de um todo que nunca é totalmente revelado, como se o próprio processo artístico estivesse condenado a não encontrar o seu ponto final, a não existir numa linha recta de sentido único. Esse carácter de continuidade dá uma profundidade ao trabalho que permite ao espectador inserir-se e perder-se nele; permite que percorra os espaços entre a repetição e a mudança, entre a memória e a reinvenção. Há sempre um passo ainda a ser dado, uma palavra não escrita, um contorno a ser desenhado.

A exposição parece, também, um gesto de reinterpretação — uma perspectiva que, ao recuperar fragmentos dispersos, os reordena sob nova luz. Incertezas e hesitações expostas à potência da revisão. Criar e delimitar para expandir, permitindo que aquilo que insiste em não se encerrar ressurja, transfigurado. As suas obras são, aqui, testemunhos de escavação, espaço de depósito, onde as marcas acumuladas são vestígios de um processo, de um pensamento que se materializa e se dissolve, onde cada camada esconde e ao mesmo tempo revela aquilo que existiu e persiste. Revelam um caminho percorrido, os rastos de testemunhos de presenças passadas.

A ideia de retomar — e, talvez, reinventar — que permeia a exposição, não parece sugerir apenas um retorno ao passado através de vestígios, mas uma reconfiguração do olhar sobre o que já foi e já se foi. O tempo, descontinuado, múltiplo, transforma e permite-nos repensar e recuperar. Em cada obra, parece residir um impulso para retomar, para reimaginar, reinterpretar, reler e para reconhecermos, nas múltiplas camadas do tempo, o que sobrevive e nos define. O que perdemos, o que guardamos, o que transformamos, pode ainda não ser completamente visível, mas, de algum modo, já nos pertence.

Retomar o passo é um exercício de reinscrever no tempo, de reconhecer os traços daquilo que fomos e daquilo que ainda seremos.

A exposição pode ser visitada até dia 13 de Março de 2025.

Maria Inês Augusto não escreve ao abrigo do AO90.

 

 

[1] O título deste artigo é uma referência às frases inscritas na obra Caligrafias do Deserto (2025), presente na exposição.

[2] Texto de Carolina Trigueiros na folha de sala que acompanha a exposição.

[3]  Texto de Carolina Trigueiros na folha de sala que acompanha a exposição.

BIOGRAFIA
Maria Inês Augusto, 34 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) na área dos Serviços Educativos como estagiária e trabalhou, durante 9 anos, no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada durante várias edições e colaborou, em 2023 com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. Desenvolve, actualmente, um projecto de Art Advisory e curadoria, colabora com o Teatro do Vestido em assistência de produção e tem vindo a produzir diferentes tipos de texto.
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