Uma semana após o evento, a clarividência começa a surgir, as ideias tomam forma e torna-se possível extrair a verdadeira essência do Cu.Co, algo difícil de passar a palavras. No primeiro dia em que chegámos, o segundo dia de Cu.Co, pedimos a Rui Miguel Abreu que nos apresentasse os colegas, pois, na verdade, conhecíamos já o seu trabalho escrito, mas não as caras que o assinam. Desde logo, dei-me conta da essência deste encontro. A proximidade física com o outro tem vindo a perder-se num mundo cada vez mais pautado pelo distanciamento e por uma comunicação cada vez mais digital, em que o contacto ocular se revela progressivamente mais residual. Este quase anonimato vigente torna o ser humano, caracterizado como ser social, potencialmente distante, criando um fosso difícil de atravessar. Esta é, afinal, uma das grandes essências do Cu.Co, um encontro de pessoas que pensam sobre cultura e que, juntas, conseguem construir um pensamento coletivo.São necessários - diria urgentes - mais encontros assim, que nos permitam sair do anonimato e conversar entre pares, construindo algo maior a partir do diálogo e da proximidade. Deste Cu.Co, pautado por boas conversas e reflexões, vão certamente nascer boas ideias e amizades. Qual é o animal que figura naquela cítara de meados do século XX? Será um macaco ou um elefante? A curiosidade despertou uma conversa no LCRIM (Laboratório de Conservação e Restauro de Instrumentos Musicais), parte integrante do Museu da Música de Coimbra e que tem o seu lugar no Colégio da Graça. É neste espaço, pelas mãos do diretor e mentor Eduardo Loio e de uma boa equipa, que se preserva a memória e a identidade musical de uma cidade. O som da criação e do restauro de instrumentos musicais ecoa pelas salas. Alunos, professores e autodidatas dão vida e reabilitam instrumentos, alguns deles quase extintos. Voltando à curiosidade inicial, Loio esclareceu-nos que a figura na cítara não revela nenhum animal em particular, mas sim uma divindade hindu. Não é a cítara o principal objeto de estudo e de preocupação deste Museu, mas sim a viola toeira, o guitarrinho, o banjo português ou o bandolão. São muitas as histórias à volta de cada um deles e das suas diversas proveniências. Aos poucos vão saindo de adegas, arrecadações ou até mesmo do lixo, para ganharem uma nova vida pelas mãos de quem os restaura. Uma das alunas já construiu dois guitarrinhos para os netos e está a aprender a tocar este instrumento, que curiosamente em tempos idos foi muito útil como um passo inicial para quem aprendia violino.
Após uma urgente conversa sobre “Instrumentos em vias de desextinção”, observamos e ouvimos estes instrumentos ganhar uma nova vida, num espaço muito especial para a sua escuta: a escadaria do Colégio da Graça, onde alguns grupos como Estaca Zero, Barco Doido e Biodiversidade em Baixo nos levaram a uma viagem no tempo que é, no entanto, bastante contemporânea. A recuperação destes e outros instrumentos é antes de mais um ato de resistência à passagem do tempo.
As noites foram passadas no Seminário Maior de Coimbra, cuidadosamente recuperado e onde encontrámos silêncio num quarto minimalista e confortável. É também neste espaço de recolha e reflexão que se situa o Semente Atelier. Criado por Inês Moura e Clara Moura, naquela que foi outrora a antiga garagem do reitor do Seminário, este espaço dedicado à arte, à performance e ao diálogo comemorou um ano de existência num dia poético, dominado por várias abordagens sensoriais. Começou ao sabor do pão do Projeto Bruta de Patrícia Miguel Dias, que nos falou sobre a forma como os bons ingredientes podem transformar o pão num medicamento, a falta de cruzamento entre o saber tradicional e as boas matérias-primas, e ainda sobre os 100 tipos diferentes de trigos que, atualmente, ficaram reduzidos a dois. Após a degustação esclarecida, teve lugar uma importante e “desbloqueadora” mesa-redonda sobre o “lugar que escuta e a cidade que germina”. A conversa permitiu também um lugar de fala ao jornalista, que na maior parte das vezes não se sente ouvido e se vê assoberbado, sem capacidade de dar resposta a um meio cada vez mais efervescente em termos culturais, e que não deixa lugar ao tempo para a observação, para a reflexão e para a escrita. Percebeu-se aqui que há ainda muito por dizer e que o tempo foi curto para um diálogo que há muito queria sair, talvez de uma certa timidez que o aprisiona. O Dj Set de Rui Miguel Abreu, em frente ao Mondego, deu continuidade à conversa através de várias vozes que se sentiram identificadas. Foi talvez este o momento em que se deu o desbloquear para as mesas redondas dos dias que se seguiram e o ponto de partida para um diálogo aberto à escuta. O almoço, em jeito de performance, cuidadosamente preparado pelo atelier Semente, fez uma conexão muito especial entre sabores, ciência e património com o Seminário Maior, centrando-se no cónego, professor e investigador Póvoa dos Reis e na sua investigação e estudo das algas vermelhas. Tratou-se de um almoço a vários tempos, numa das salas onde dava aulas e onde nos deparámos com uma espécie de museu de história natural. A Matéria do Gesto foi a performance que se seguiu numa espécie de diálogo entre a dança de Inês Moura e o som dos músicos Bernardo Nascimento e Gonçalo Parreirão. Corpo, matéria, gesto, pele e som uniram-se neste dia em que muitas sementes germinaram.
Os últimos dois dias foram dedicados à arte contemporânea. No primeiro, uma conversa ampla sobre os eternos problemas da comunicação da arte: a suborçamentação e a falta de espaço e financiamentos dos meios de comunicação social, num importante debate crítico que deu continuidade ao já iniciado no Atelier Semente. No segundo, a fruição de uma dança a vários tempos entre Helena Almeida e Artur Rosa na exposição Juntos, e a natureza contemplativa e minuciosa de Andreia Nóbrega, ambas no CAV, com curadoria de Miguel von Hafe Pérez. Seguimos rumo ao CACC, onde está patente a exposição Sombra dupla: obras da Coleção de Arte Contemporânea do Estado, com curadoria de Ana Guimarães e Beatriz Hilário, e onde teve lugar a mesa redonda com o tema “Coimbra e a construção de uma nova centralidade contemporânea” entre entidades como o CAPC/Anozero, CACC, CAV e vários jornalistas. O tema tornou pertinente pensar a Bienal Manifesta 17 Coimbra Anozero’28 e a forma como o acolhimento desta iniciativa pode fortalecer o meio da arte contemporânea, não só a nível local como nacional. Várias serão as conexões que este projeto conjunto irá estabelecer, envolvendo a Universidade de Coimbra, as várias estruturas da cidade ligadas à arte e à cultura e as comunidades, beneficiando das condições locais, culturais, urbanas e ambientais. Na mesa-redonda reforçou-se a também eterna questão da falta de públicos e a importância de formar pessoas despertas e interessadas nos vários temas convocados pela arte contemporânea, de modo que a ligação entre Universidade, estruturas e comunidade deverá assumir um papel cada vez mais coeso no mitigar desta que é sempre uma grande questão.
A equipa da Manifesta irá mudar-se para Coimbra em 2026, com o objetivo de começar a trabalhar no projeto proposto pela Anozero, assente no Património Mundial da cidade e na importância da preservação da floresta. O início do Cu.Co
A semente do Cu.Co nasceu em 2014, altura em que Rui Miguel Abreu foi convidado pelo Goethe Institute para ir a Nairobi a um encontro de jornalistas, do qual faziam parte 20 jornalistas de 5 capitais europeias e de 5 capitais africanas. “O programa foi ótimo, e o grande objetivo era que conversássemos entre nós, durante algumas horas por dia, sem nenhuma outra intenção que não fosse pensar em voz alta, e em que as nossas conversas pudessem ser gravadas, para que as mesmas permanecessem em arquivo”. Deste encontro resultou o livro Ten Citys, editado pelo Goethe Institute, deixando latente na sua memória a ideia de criar algo semelhante. Foi há cerca de três anos que o projeto começou a tomar forma, quando conheceu Rafael Nascimento, chefe de divisão do departamento de cultura do Município de Coimbra e lhe propôs o projeto. “A partir de várias conversas chegámos a este desenho, composto por duas grandes linhas orientadoras: reunir num mesmo espaço uma série de pessoas que escrevem sobre cultura, dando-lhes pretextos para que possam pensar, discutir, conversar em momentos que tanto podem acontecer durante o almoço, ao final do dia numa esplanada ou em mesas redondas, formais. E, por outro lado, pensar e refletir sobre a realidade cultural da cidade, demonstrando que Coimbra não tem uma monocultura no que à produção cultural diz respeito. É uma cidade plural, com muitas camadas, onde várias artes se cruzam”.
Foi essa a premissa do programa, quando começaram a esboçá-lo, convocando uma reunião geral no Convento de São Francisco, com as várias estruturas que pensam, criam e produzem cultura na cidade, da arte contemporânea, ao cinema, à música e ao teatro. O próprio espaço onde decorre a auscultação e ao qual fizemos uma visita guiada, foi transformador para a cena musical de Coimbra, o Convento de São Francisco. “Um equipamento extraordinário e que felizmente está vivo e com uma excelente programação”.
Para Rafael Nascimento faz sentido que o projeto esteja também ancorado a uma determinada programação espontânea da cidade, “que nela integre vários concertos, show cases, a peça do Teatrão em Serpins, numa perspetiva de descentralização, ou a exposição Cave – Obras da Coleção Encontros de Fotografia e do artista convidado Carlos Lobo, com curadoria de Miguel von Hafe Pérez”. Situada no antigo armazém de móveis “A Feira”, um espaço privado, devoluto, que faz parte da memória coletiva da sociedade. De acordo com Nascimento, “a razão fundamental para fazermos o Cu.Co está também relacionada com uma visão que eu tenho do que deve ser a ação das câmaras municipais quando estão no território, que, ao invés de imporem um programa, devem olhar, escutar e perceber a já massa crítica existente e ajudar a que a mesma tenha condições para criar e fazer melhores projetos e trabalhos”.
O Cu.Co nasce assim desse encontro entre o território e a necessidade de preservação de um bom jornalismo cultural através da conversa e do debate. “E o objetivo deu-se, os jornalistas começaram a falar das suas questões, angústias e dificuldades, num lugar de fala que não existia e muito relevante nestas mesas redondas”, contou Rui Miguel Abreu. Conversas que estão a ser gravadas e que em breve serão publicadas num site, pois existe a intenção de criar esse arquivo. “Quem sabe se daqui a 10 anos o próprio site se tornará uma espécie de repositório de memórias, que poderá ser investigado, estudado e referenciado.”
Há uma energia especial que circula na cidade, uma vontade de falar e de pensar em soluções através de encontros estimulantes e produtivos.