interview
Entrevista a Francisca Valador, autora da Capa do Mês
DATA
23 Set 2025
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AUTOR
Diogo E S Dietl
A prática de Francisca Valador (Lisboa, 1993) gera-se a partir dos pequenos objetos, plantas, brinquedos, recortes e vestígios que vai cuidadosamente colecionando e, de quando em vez, reproduz, à escala real, em delicadas e encantatórias composições. Destas nascem "novas narrativas, significados, vida", assim o afirma a galeria Matèria, em Roma, onde Francisca apresentou em 2025 a exposição "A partir daqui só há dragões".

Diogo E S DietlSugiro organizarmos esta pequena conversa em três pulos, por entre pontos significativos do teu percurso recente. O primeiro é imediato, vai da mostra colectiva que organizaste em tua casa, "Porta Entreaberta"(2023), até à tua primeira exposição individual, "As primeiras flores são amarelas" (2024), na Arbag. Que continuidades e disrupções há no teu trabalho nessa passagem?

Francisca Valador Pulemos então! As duas mostras têm um papel muito importante no desbravamento da minha prática. Em "Porta Entreaberta" regressei à pintura a óleo, e pela primeira vez apresentei duas pinturas com representação de recortes, procurando alargar a narrativa, criando imagens mais ambíguas, menos concretas. Em contrapartida, os títulos surgiram mais sugestivos e descritivos. A experiência dessa exposição serviu de catapulta para me aventurar na minha primeira individual, e estas particularidades transitaram para "As primeiras flores são amarelas". Na base dos meus trabalhos estão histórias, fábulas, anedotas, relações que vou criando entre vários elementos, e na ausência da multiplicidade de diálogos que existe numa exposição coletiva, as várias vozes resultariam destes cruzamentos. Peguei em ideias que já pairavam há algum tempo, e que tinha muita vontade de materializar, mas nunca tinha surgido a oportunidade. O ponto de partida foi a cor amarela que até então não aparecia muitas vezes no meu trabalho e chegava a gerar-me algum desconforto. Não é que eu não gostasse da cor, sempre achei uma cor bela – do sol, do pólen, dos limões – mas não me caía bem, por isso a ideia era atravessá-la para melhor compreendê-la. Nesta exposição surgiram novas necessidades. O espaço era maior, com dois pisos, e senti que precisava de criar ambientes diferentes, um mais diurno e solar, outro mais noturno e cavernoso. Também foi aqui, após ter sentido esse desejo em "Porta Entreaberta", que as minhas pinturas saíram de dentro das molduras, sob suportes de inox. Alguns elementos transitaram de uma exposição para a outra, ganhando nova vida – os recortes, as meias, as flores, o mobiliário – outros desapareceram, ou melhor, hibernaram.

DDAinda pensando nesse paralelo, que desafios envolveram em termos de preparativos e do aspecto organizador?

FV"Porta Entreaberta" surgiu num momento de transição. Ia mudar de casa e não tinha planos para mostrar trabalho no horizonte, o que gerou a oportunidade de transformar o meu apartamento vazio num espaço expositivo. No final, acabei por manter-me no mesmo apartamento, onde vivo até hoje, e onde ainda é possível encontrar vestígios desse encontro. Nessa altura ia mostrar trabalho individual, pela primeira vez em vários anos; não o queria fazer sozinha, preferi partilhar a ocasião. A escolha das pessoas a integrar a exposição surgiu naturalmente, o seu trabalho tinha algo de doméstico, com diferentes estéticas e abordagens mas eu sentia que de alguma forma interligava no meu e impactava-me. Inês Brites, Sara Graça, Sara Mealha, Leylâ Gediz e Eva Oddo, algumas amigas de longa data, outras tornaram-se depois desse momento. Como a Eva escreveu no texto para a ocasião, “pegam voo juntas” e que bonito foi! Um desafio transversal aos dois projetos foi o orçamento. Em "Porta Entreaberta" sabia que podia recorrer ao entusiasmo destas artistas que estava a convidar, mas ao organizar uma exposição coletiva era importante para mim encontrar uma forma de reconhecer e valorizar o tempo e ideias que cada uma trazia. Consegui o apoio à criação da Gulbenkian que me permitiu avançar com a concretização do projeto. Para a minha primeira individual, contei com o prémio Flechada, da FLAD. Tento ser económica com os materiais, por vezes por necessidade, mas também como forma de desafio, testar a ideia ao seu limite. Por exemplo, em "Porta Entreaberta" tinha uma meia que pendia na balaustrada da fachada do prédio. Era apenas uma meia revestida a gesso, o título contava a história. De quem visitou, houve quem achasse que tinha sido elaboradamente fundida em bronze, enquanto a minha avó pensou ser a meia que o vizinho de cima deixara cair. Tenho tendência para complicar, por isso encanta-me este exercício de chegar a um fim de forma simples. Mas no caso de "As primeiras flores são amarelas", o apoio foi muito importante: permitiu-me pôr o exercício um bocadinho de lado e deu-me tempo e margem para experimentar coisas novas, para errar e recomeçar. Por vezes o trabalho de atelier pode ser solitário. Encontro muita riqueza na partilha e sabia que esta exposição também seria um momento para encontrar novas formas de dialogar. Queria explorar médiuns que nunca antes explorara e acabei por me cruzar com a Adriana João que fez uma leitura da exposição através do som e com Di Lança Branco que deu uma nova interpretação com um texto-poema evocando as suas próprias memórias. Há muito trabalho de backstage na concepção de uma exposição e nem sempre é fácil quando o fazes sozinha, mas quando as coisas começam a ganhar forma é uma grande emoção.

DDFalaste dos suportes em inox, que meras semanas antes de mostrares em Lisboa inauguraste na Artissima, Torino (IT): um óleo-furacão em que um pássaro (que se vai tornando recorrente no teu trabalho) atravessa um mar de recortes. Na mesma feira, onde participaste com a Matèria, levaste um conjunto de obras mais serenas e absortas na sua elegância – uma série de aguarelas a partir de asas de borboleta. Dias depois ainda fizeste parte do "The Kitchen Show" (curadoria de Felix Vong e minha, no Estúdio Atilho), com trabalhos site-specific na área da escultura. São abordagens de trabalho bem distintas, uma mais planeada e firme, outra de abertura e improviso q. b. São lugares de conforto para o desenvolvimento da tua prática, ou foram formas de responder a propostas concretas?

FVSão contextos muito diferentes e as respostas foram ajustadas. Não é comum pensar nas obras enquanto série, apesar de ser muito recorrente repetir elementos que transitam de umas para as outras e que acabam por criar alguma coesão. Os trabalhos que referes e que apresentei na Artissima são dos raros casos em que as pinturas foram pensadas em sequência, como forma de amparo. A feira pode ser um local violento, é uma grande explosão de informação, com muito para ver e processar. Assim, numa pequena família, as pinturas encontraram alguma serenidade entre elas. O "Kitchen Show" foi um projeto feito por artistas, por pessoas que gostam de pensar em arte e por amizades. Este tipo de projetos surge da tentativa de colmatar necessidades, mas chocalham as águas de forma muito interessante. Se é que posso partilhar, tu e o Felix conheceram-se em minha casa, na "Porta Entreaberta" e a partir daí surgiram trocas de ideias, vontade de juntar pessoas e, consequentemente, o "Kitchen Show". Estes momentos privilegiam precisamente isso. Como o nome indica, a exposição tomava lugar num espaço de cozinha. O contexto em si pedia que se brincasse de forma mais experimental, não fazia sentido mostrar algo que já tivesse pronto. Era uma oportunidade para olhar em volta e aproveitar o que o espaço tinha a oferecer.

DD"As primeiras flores são amarelas" tinham algo de conto – os cenários, as personagens, sugestões de narrativas. Como revelava o teu texto de apresentação, tudo começou a brotar de memórias de infância, de uma abelha a viver na pele do teu pai, que também te passou o conhecimento que vem no título. Porém sinto que experienciando a tua exposição sem tal apoio nos sentiríamos na mesma nessa tal ambiência de encanto, a tentar deslindar uma história mágica a partir da riqueza dos detalhes, diálogos, surpresas e personagens – a meia-cobra e o rato, as "Noturnas", os girassóis, os traços do espantalho, os trevos de 5 folhas, … Referiste como "as vozes" da exposição surgiriam do cruzamento entre obras, mas também pensaste nessa abrangência celeste, nessa micro-mitologia, ou as tuas reflexões acontecem de trabalho em trabalho e no final deixas-te surpreender, tanto quanto nós, com o encontro?

FVGeralmente o ponto de partida do meu trabalho não é guiado por um tema, mas pelos objetos que vou colecionando e que habitam as minhas pinturas. Esta repetição, que também tu notaste, interessa-me, é uma forma de resistência à sede de novidade e à rapidez que nos é pedida. Dois caules de maçã, num lugar podem ser uma árvore, no outro dois amantes deitados ao sol. São os mesmos caules secos, e apesar de familiares, tentam manter autonomia. Com a exposição, "As primeiras flores são amarelas", foi ligeiramente diferente. O título já entoava um caminho. Comecei com algumas ideias bem definidas, outras foram surgindo neste jogo de imaginação. Alguns desafios e erros também levaram o trabalho a outras paragens. Antagonicamente à permanência e repetição, trabalho também com muitos elementos efémeros, que apenas duram alguns dias ou existem em determinados períodos do ano. Agora, por exemplo, estou à espera que regressem as primeiras chuvas e com elas os trevos – requer atenção e paciência. Comecei a produzir para a exposição em meados de Abril e o ponto de partida eram as flores que aparecem no início do ano (antes da chegada da primavera). Quando as fui colher já não existiam ou estavam prestes a desaparecer. Para preservar a sua imagem, a sua existência, comecei a estampar as folhas e flores que restavam. Tinha vontade de continuar a trabalhar com recortes, por isso sabia que estas silhuetas me levariam a algum lado e foi assim que começaram a surgir as primeiras pinturas da exposição. Foi o primeiro passo para que se desenrolasse o resto. Queria transformar o espaço e para tal foi necessário planeamento e compromisso, mas apenas na montagem a exposição ganhou a forma final. Eram bastantes peças, mesmo que algumas discretas, e tive a sorte de ter tempo para pensar nos últimos ajustes e diálogos já no espaço que a exposição ia habitar, na Arbag. Nesse momento, as narrativas que existiam em cada obra expandiram-se num coletivo.

DDSaltemos agora de Lisboa a Roma. Precisamente 5 meses após a inauguração das … "flores" … abres as portas para "A partir daqui só há dragões", na Matèria, exposição com um enfoque diferente na pintura. Em particular, depois do tal primeiro momento na Artíssima e de duas fortes propostas em Lisboa, todo o trabalho pictórico em Roma foi apresentado nos suportes de aço inoxidável. Pequenos mundos, por vezes delicadíssimos, bem delimitados e com muito espaço para respirarem, que ainda assim se expandem naturalmente entre si – sem se contaminarem, sem se consumirem, numa harmonia de meditações, consolos e prometedoras bonanças que parece aprimorar-se a cada nova obra. Como foi construir este universo, ainda mais para um espaço expositivo à distância?

FVTinha acabado de inaugurar a minha primeira exposição individual quando surgiu a oportunidade de fazer esta segunda. “Aqui há dragões”, em latim "Hic sunt dracones”, refere-se a uma nota que era deixada nos mapas medievais para identificar zonas perigosas ou desconhecidas. Encontrei estes apontamentos por acaso, perdidos num caderno que tinha esquecido e, sem saber bem o que viria a seguir, encaixaram com exatidão. "A partir daqui só há dragões" e eu esperava encontrar algum! Como destacas, a exposição já não seria aqui ao lado, o que levantava novos desafios. Desta vez não teria a oportunidade de pensar as obras no lugar onde se instalariam e teria de tomar decisões mais antecipadamente. Era agora inverno e os meus maiores desafios eram o frio e a humidade que aumentavam o tempo de secagem das pinturas e como iria transportar tudo até Roma, teria de ser perspicaz. Estava a explorar estes novos suportes, em inox, brilhantes, afagados e pesados, e queria dar um maior ênfase à pintura. Ver como sobrevivia, na sua pequena escala, num espaço amplo. Surgiu assim uma exposição “invisível” – ao espreitar de longe, apenas se avistariam pontos, uma constelação. Seria preciso desacelerar e uma atenção redobrada para desvendar os pequenos universos de cada pintura. O espaço respiraria, e as pinturas também. Em três malas, acabei por conseguir levar tudo comigo no avião.

DDA exposição incluiu algumas composições escultóricas: no chão, um par de luvas suportando um ninho, e, suspensa da parede, uma colher onde se reúnem três flores de anis-estrelado, em bronze, além de vários outros elementos que faziam mais por passar despercebidos. Sendo evidentemente da mesma mão e aliando-se plenamente no aprofundamento de um território, a tua escultura têm uma natureza algo diferente da pintura. Qual é o espaço que cada meio toma na tua prática e como os abordas?

FVAs pinturas requerem muito tempo e atenção, várias horas na mesma posição e nem sempre a concentração está para aí virada. A escultura aparece como um intervalo, algo mais físico que permite mover o corpo de outras formas – amassar, cortar, lixar, misturar. E, na verdade, a passagem para o tridimensional aproxima-se muito dos objetos que vou colecionando, quase sob forma de amuleto, e acaba por ajudar-me a pensar a pintura. Discretas, as esculturas que mencionaste ajudam a dar ritmo à exposição, criam vários níveis e têm uma carga doméstica por vezes mais palpável que a pintura. Robert Walser tem um pequeno livro de contos, muito simples, protagonizando objetos banais. Cada um desses contos é como se fosse uma pequena pintura, evoca muitas imagens. Num deles conta a história de umas luvas esquecidas sobre uma mesa. Várias pessoas passam por ele e vai tentando adivinhar a quem poderão servir aquelas luvas. Quando imaginei a peça "Nest", com as luvas azuis, não tinha este conto em mente, só mais tarde relembrei. Mas é um pouco isso, como se cada um destes objetos acrescentasse uma personagem externa, deixando a pergunta – quem passou por ali? Ou como Hansel e Gretel que vão deixando migalhinhas para não se perderem.

DDEm Roma continuaste também o trabalho de sombra e luz que mostraste na Arbag, um gesto exploratório e experimental que prolongas e de certa forma invertes, que no primeiro momento alargava a fábula à noite estrelada e em "A partir daqui só há dragões" fundou um templo astronómico de estudo de signos. Em ambas, a luz não é neutra nem distante, pelo contrário está envolvida, sente, reage. Como chegas e onde nos levas com estes espaços?

FVComo já falamos, em Lisboa sabia que fazia sentido o piso inferior ser noturno. A sala estava escurecida, envolta num conjunto de painéis de alcatifas com recortes que faziam alusão a uma gravura de Hokusai e que deixavam a luz atravessar por esses pequenos vazios. Aproximava-se, de facto, a um céu estrelado. Mas, por existirem outras obras, a iluminação não podia ser ausente, mas sim específica. Criei então um conjunto de lâmpadas em forma de flor, "Inflorescências" – quando uma flor é composta por várias flores mais pequenas, uma espécie de cacho, é o nome que se dá. E tal como uma flor, com o tempo e com o calor, algumas das pétalas iam caindo e ocupavam um novo lugar no chão da exposição. Em Roma, quis transportar a ideia dos recortes que deixavam passar a luz, mas como o espaço era diferente, não fazia sentido replicar a mesma forma. O negativo passou a positivo, o que outrora tinham sido vazios eram agora objetos tridimensionais. Várias camadas de alcatifa, sobre um suporte de inox, suspensas por mirtilos, amoras, caracóis, etc., que na verdade eram parafusos em bronze. Tinham uma sala só para elas, abrigadas da luz e distantes das pinturas. No processo de construção apelidei-as de “sombras”, apesar de serem brancas, silhuetas que passavam despercebidas. Novamente, não queria as minhas “sombras” na penumbra total. Em vez de transformar as lâmpadas, queria criá-las de raiz. Nalgumas zonas de Itália existe uma longa tradição ligada ao trabalho do vidro, por isso fazia sentido essa passagem. Em conjunto com um artesão, soprámos cinco lâmpadas, que depois de instaladas, pendiam quase até ao chão. Com gotas de vidro sobre a superfície – derretidas, condensadas ou transpiradas – criavam novas sombras e movimentos. Quando chamaste essa sala de “templo” surgiram-me imagens de antigas igrejas ou capelas com os frescos desbotados e a descascar, porém onde algo ainda vibra.

DDVamos a um pulo transcendente, para o ar e para o mar. O pássaro, ou uma família de pássaros, mergulhou e voou em Torino, em Lisboa e em Roma, entre recortes, sombras e luz. Que pássaro gostarias de ser?

FVNão consigo dar uma resposta fechada, mas viajar é importante, por isso teria de ser um pássaro migratório. Hoje podia ser uma andorinha! São elegantes, e com os seus voos rasantes sempre me anunciaram a primavera. Todos os anos regressavam à ombreira da porta de casa dos meus avós, e encantavam-me com os seus dotes de escultoras. Pedacinho a pedacinho, com terra e saliva, construíam os seus ninhos – pequenos igloos invertidos, fechados em si, de total proteção, preservando o conforto e a intimidade. Parece-me uma boa forma de viver, mas amanhã podia ser uma coruja ou um colibri!

BIOGRAFIA
Diogo ES Dietl, licenciado em História pela Universidade Nova de Lisboa, acompanha a criação artística contemporânea desde 2012, atuando ocasionalmente nas suas margens através da escrita, assessoria, divulgação, produção e co-curadoria.
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