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Do Moderna Museet, em Estocolmo, fez-se um T7 com jardim
DATA
23 Ago 2024
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AUTOR
Maria Inês Mendes
Seven Rooms and a Garden é casa do artista e cineasta norte-americano Rashid Johnson. A porta para este espaço de intimidade está aberta, e – sem que sobre nós recaiam expectativas – o seu anfitrião diz-nos: Ponham-se à vontade. Descalcem-se. Abram o frigorífico e sirvam-se do que quiserem. A minha casa é vossa também.

Seven Rooms and a Garden é casa do artista e cineasta norte-americano Rashid Johnson. A porta para este espaço de intimidade está aberta, e – sem que sobre nós recaiam expectativas – o seu anfitrião diz-nos: Ponham-se à vontade. Descalcem-se. Abram o frigorífico e sirvam-se do que quiserem. A minha casa é vossa também.

Seguimos a sua palavra de ordem e habitamos o seu espaço, obedecendo à funcionalidade prévia de cada divisão. Entre as galerias contíguas, desdobram-se camadas da sua vida pessoal e profissional. Esta casa-exposição é, afinal, um retrato do artista: abstrato, fragmentado e condensado entre as paredes deste T7 com jardim. Imersos na sua esfera doméstica, privamos com os hábitos, os vícios e os valores políticos que pautam o seu quotidiano. Vemos uma assemblage visual vibrante, onde as suas obras e objetos pessoais são colocados em relação com a coleção do Moderna Museet.

As obras selecionadas permitem-nos conhecer Rashid Johnson por intermédio de terceiros, em confronto e em diálogo com o seu trabalho. Como um autorretrato através do outro, Seven Rooms and a Garden implica dar palco, um gesto simultaneamente literal e figurado. As paredes, os tetos e as peças de mobiliário azuis – uma alusão à influência da música blues na sua obra – são um espaço de exibição; um palco onde se dispõem as peças dos artistas convidados. Rashid Johnson, por sua vez, permanece offstage: despido do protagonismo que lhe foi outrora concedido. Sair de palco representa um reconhecimento da permeabilidade da sua prática artística. O artista é já uma soma de influências e, neste sentido, esta exposição é também um lugar-comum, um ponto de interseção entre as suas referências. A relação que entre elas se estabelece não é, no entanto, cronológica. Distantes no tempo, espaço e forma, as peças agrupam-se em torno da temática central da sua obra – a abstração.

Em On the Blue Stage, catálogo que acompanha a exposição, Rashid Johnson define a abstração como um estado liminar, situado entre a ilegibilidade e a certeza de que a comunicação é eficaz. Esta definição torna-se particularmente manifesta na primeira galeria da exposição, intitulada de The Salon. Numa estrutura metálica, colocada sobre um palco azul, reúnem-se inúmeras obras abstratas, entre elas, trabalhos de Asger Jorn, Barnett Newman, Rubem Valentim, Stanley Whitney, Lee Lozano e Ernest Mancoba. Todos estes artistas – sem exceção – expressam um grito. Desconhecemos a sua motivação, mas reconhecemos o sentimento que lhe é inerente. Está em causa um fluxo criativo ininterrupto que permite comunicar o incomunicável e materializar o espiritual. O mesmo se poderá escrever sobre God Painting “Closed Eyes” (2023), de Rashid Johnson. Marcada pela repetição compulsiva de uma forma amendoada, a vesica piscis, esta obra revela que a abstração constitui, em última instância, um exercício individual meditativo.

God Painting “Closed Eyes”, também exibida em The Salon, surge acompanhada pelo som de “(What Did I Do to Be So) Black and Blue”, de Louis Armstrong. Esta seleção musical reflete a tentativa de Rashid Johnson colmatar a perspetiva historicamente limitada que as instituições apresentam da abstração. Louis Armstrong – habitualmente relegado para um plano secundário – é colocado a par dos artistas reconhecidos como cânones da arte abstrata. A letra e o ritmo da sua música reverberam no espaço e vêm reclamar a influência da música nas artes visuais. Estreita-se a relação entre a música e a abstração, que será repetidamente explorada nas galerias adjacentes.

Em The Bedroom, o quarto desta casa-exposição, é o jazz que dita o ritmo das imagens, o movimento das formas e a vibração das cores. De luzes apagadas, deitados sobre uma cama azul, contemplamos uma série de composições do livro Jazz (1947), de Henri Matisse, e assistimos a um programa rotacional de filmes inspirados nesta obra. À data da minha visita ao Moderna Museet, estavam em exibição When I Put My Hands on Your Body, de David Wojnarowicz och Marion Scemama, e Anthem, de Marlon T. Riggs. Profundamente experimentais, estes filmes refletem sobre o corpo queer: esse espaço privado incessantemente invadido por projeções e expectativas que lhe são exteriores. When I Put My Hands on Your Body, posterior ao diagnóstico do artista com AIDS, em 1989, retrata o desejo e a decadência dos corpos. As imagens – sobrepostas a uma narração poética – revelam-nos o seu encontro com o artista Paul Smith. Sobre uma luz azul, os seus corpos entrelaçam-se; fundem-se num corpo apenas. O filme constitui-se assim como uma exploração cinemática da intimidade, isto é, como uma deslocação da esfera privada do artista para as instituições de arte.

Esta reflexão culminará na última galeria da exposição, onde encontramos um conjunto de obras, de Soufiane Ababri, Andy Wharhol, Cecila Edelfalk, Melissa Shook, Lena Cronqvist e Samuel Fosso, que prendem em si abordagens múltiplas ao autorretrato. Em comparação com estas diferentes metodologias, Rashid Johnson apresenta Black and Blue, um filme gravado em sua casa durante o período de pandemia. Neste autorretrato clássico, conhecemos os detalhes mundanos do seu quotidiano. Faz-se jus à estrutura desta exposição, à casa que é – por primazia – o espaço de intimidade. Esta é a peça central da última galeria, um encerrar da exposição com a certeza de que o principal retrato que temos em mãos é o de Rashid Johnson. Resta, então, questionar: Não será a casa o mais autêntico reflexo do quem somos?

Seven Rooms and a Garden está patente no Moderna Museet, em Estocolmo, até dia 22 de setembro de 2024.

BIOGRAFIA
Maria Inês Mendes frequenta o mestrado em Crítica e Curadoria de Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2024, concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. Escreve sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Realizou um estágio curricular na Umbigo Magazine e, desde então, tem vindo a publicar regularmente. Colaborou recentemente com o BEAST - Festival de Cinema da Europa do Leste.
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