Conhecida pelas suas instalações monumentais criadas com SCOBY (Symbiotic Culture of Bacterial Yeast), a artista repete uma vez mais a sua fórmula, que não perde, ainda assim, a sua pertinência e impacto. Se, por um lado, a utilização destas culturas bacterianas para a produção de kombucha é-nos já reconhecível, a sua transposição para um universo artístico instala um desconforto simultaneamente repulsivo e fascinante.
Não entrámos ainda na exposição quando uma massa de ar, carregada de um odor ácido, pungente e avinagrado, se entranha pelas narinas. É este o primeiro indício de um organismo vivo que aqui habita. No centro do espaço expositivo, dois SCOBY de grandes dimensões, grosseiramente costurados a uma grelha de tecido sintético. As suas tonalidades entre o bege, o verde e o castanho fermentado, aliadas a uma textura viscosa e carnuda, evocam imagens do interior do corpo humano, sugerindo membranas, vísceras e tecidos gordurosos em putrefação. Emerge uma inquietante estranheza que Freud descreveria como uncanny[1]. Este organismo não é humano, mas também não é um outro - é um corpo que poderia estar dentro de nós, que talvez seja, afinal, parte de nós. Uma espécie de abjeto, tal como definido por Julia Kristeva em Powers of Horror: An Essay on Abjection: que não é nem sujeito nem objeto, mas que nos ameaça precisamente por residir no limiar de ambas estas classificações. É justamente nesta fronteira, entre o eu e o outro, o humano e o não-humano, que Mute Track opera.
De resto, a instalação dá lugar a uma coreografia hipnótica - uma cadência de gestos repetidos, precipitados num automatismo maquínico. Acoplados a uma estrutura de andaimes e motores rotativos industriais, os SCOBY partem de uma posição de repouso e aumentam gradualmente a sua velocidade. Alternam entre uma rotação lenta e uma aceleração abrupta, num ciclo contínuo programado para se repetir a cada seis minutos. A matéria acompanha este movimento, deixando um rastro húmido que se espalha em anéis concêntricos sobre o chão da galeria. O som dos motores, intermitente e metálico, pontua o espaço com uma precisão ensaiada. De tempos a tempos, ouve-se um gotejar - irregular e quase imperceptível - que interrompe este ritmo mecânico. A instalação parece viva: não porque se move, mas porque se impõe com uma cadência própria, uma presença pulsante e imprevisível. Destaca-se, assim, uma tensão latente entre os corpos frágeis e orgânicos dos SCOBY e a robustez metálica dos mecanismos que os sustentam. A máquina parece permitir que estes corpos continuem vivos e, ao mesmo tempo, desejar despedaçá-los a cada instante.
Num estado liminar entre a carne e o aço, a integridade e colapso, a instalação evoca um cenário ambíguo. Estaremos num laboratório ou num talho? Num santuário ou num depósito de resíduos biotecnológicos? O título da exposição, Mute Track, sugere, desde cedo, esta sua natureza paradoxal. O termo ‘track’ pressupõe uma trilha, um deslocamento — talvez até um caminho sonoro, uma música. Por sua vez, a palavra ‘mute’ descreve um silêncio, uma supressão sonora. Há uma sugestão de ausência que se revela como uma escuta daquilo que permanece inclassificável, num entrelugar desconcertante entregue ao silêncio. Em tempos de domesticação absoluta do mundo, Mute Track é sobretudo um encontro primário, quase ritualístico, que silenciosamente nos confronta com a nossa própria corporeidade. Diz-nos que somos também matéria, que há algo de nós naqueles organismos suspensos. E que, em última instância, o mundo, lá fora (ou cá dentro), como uma cultura bacteriana, não cessa de crescer, com ou sem a nossa permissão.
Anteriormente exposta em St. Chads, em Londres, Mute Track está patente no Sismógrafo até dia 26 de julho.
[1] The Uncanny (1919), S. Freud