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In the Mouth of a Flowering Ghost, na Figura Avulsa
DATA
15 Jul 2025
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AUTOR
Katya Savchenko
Era um dia excecionalmente quente de julho quando fui ver a nova exposição na Figura Avulsa. Ao entrar no edifício que abriga este espaço gerido por artistas, senti imediatamente um alívio. Não só fui cordialmente recebida por Ana Cardoso – fundadora da Figura Avulsa – e pelos artistas expositores Carlos Noronha Feio e Mirna Bamieh, como também me senti reconfortada pelo ar fresco e húmido que se mantinha dentro das paredes grossas e antigas desta antiga casa particular. Parecia que tinha sido engolida por uma criatura gigante e antiga e que, agora, repousava no seu ventre.
Figura Avulsa é um projeto independente idealizado por Cardoso com o objetivo de mostrar artistas que trabalham em diferentes geografias e sobre materiais diversos, incluindo instalação, pintura, performance, texto, som e vídeo. O nome – Figura Avulsa – foi inspirado por um pequeno painel de azulejos descoberto no edifício, composto por azulejos restantes dispostos numa composição caleidoscópica de padrões e caracteres fragmentados, em vez de uma única imagem. Em português, ‘figura avulsa’ refere-se a uma «figura independente» – um termo usado para azulejos individuais que podem funcionar de forma autónoma ou, quando montados, contribuir para uma narrativa visual mais ampla. Tal como os azulejos a que se refere, o projeto reúne vozes e práticas distintas numa estrutura vagamente entrelaçada, incentivando uma experiência partilhada moldada pela colaboração e pelo intercâmbio mútuo.
In the Mouth of a Flowering Ghost é uma exposição dupla concebida pelos artistas lisboetas Carlos Noronha Feio e Mirna Bamieh com Ana Cardoso. A exposição começa numa antiga cozinha – o primeiro espaço que Figura Avulsa ocupa no edifício – um cenário que ressoa intimamente com o interesse de investigação contínuo de Bamieh. Objetos de cerâmica e técnica mista dos seus projetos recentes Sour Things: Kitchen (2023) e Bitter Things (2024) estão espalhados intimamente pela sala. Neste conjunto de obras, Bamieh aborda o domínio político dos produtos agrícolas e dos métodos de conservação de alimentos, como a fermentação, bem como os ambientes domésticos, refletindo sobre a condição humana contemporânea informada pela temporariedade, pelo deslocamento, isolamento e conflito.
No entanto, não são as peças de cerâmica que se assemelham a frutas amassadas ou a uma mão a agarrar massa que dominam a antiga cozinha. É antes o vídeo de Bamieh, A Brief Commentary on Almost Everything (2012) — uma documentação de um único bocejo a desenrolar-se em câmara lenta. Suspensas em vários estágios de transição, as expressões faciais mutáveis da artista inauguram inúmeras possibilidades de interpretação: o que é que esta boca está a fazer? Estará a bocejar, a falar, a antecipar um beijo, a cantar — ou talvez a gritar?
Do outro lado da sala, em frente ao vídeo, encontra-se a nova obra abstrata em grande escala de Noronha Feio, In the Mouth of a Flowering Ghost (2025), que adotou o título da exposição. Esta pintura expandida apresenta um tubo de néon curvo que lembra vagamente uma língua, projetando um halo azul pálido sobre a tela crua, marcada com branco translúcido e toques ocasionais de cor. Na sua abordagem à abstração, Noronha Feio resiste à orquestração e à linearidade. Em vez disso, a sua prática abraça a desordem e a fluidez, procurando não direcionar a interpretação, mas encenar um encontro em que o significado permanece aberto e instável. O artista constrói o ambiente para esta experiência através de pinceladas de cor aparentemente despreocupadas e acidentais — pintadas ou moldadas a partir de néon — que desafiam o olhar e perturbam a superfície ou, no caso das suas obras escultóricas, se estendem pelo espaço. Um desses objetos, A cobra, o vento, e o poder rosa (2021), está instalado no pátio interior, onde a exposição continua.
O delicado vidro da escultura de Noronha Feio repousa sobre uma almofada de musgo e líquenes, que florescem nas superfícies de pedra do pátio. No seu ensaio Establishing New Worlds: The Lichens of Petersham, a micologista americana Anne Pringle refere-se aos líquenes como fantasmas ecológicos – vestígios de relações simbióticas entre fungos e organismos fotossintéticos. Estas parcerias podem persistir para além do desaparecimento de um dos parceiros, deixando para trás uma estrutura moldada pela antiga ligação. «Um corpo fúngico outrora associado a uma alga agora desaparecida, os contornos da sua antiga intimidade ainda visíveis na pedra.»
Ecoando as texturas circundantes do pátio, vemos a nova peça de cerâmica de Bamieh e um objeto da sua série Grieving in Colours (2024), com laranjas murchas e cobertas de bolor. A ambiguidade destas obras é inquietante — a opulência dos esmaltes dourados contrasta com as formas e acabamentos que sinalizam decadência. Neste projeto, a laranja aparece como um elemento simbólico central — outrora amplamente cultivada e comercializada em Jaffa, local de origem paterna da artista, a laranja evoca o luto e o trauma, a conexão palestina com a terra e o cultivo, interrompida pelo reassentamento forçado.
In the Mouth of a Flowering Ghost apresenta outra das esculturas de Bamieh criadas para a exposição: uma linha de sete metros de cravo-da-índia em cerâmica suspensa acima da antiga cisterna no centro do pátio. Na sua série contínua de esculturas suspensas Sour Cords (2024), Bamieh considera a secagem ao sol um método de preservação e, ao mesmo tempo, um gesto simbólico: a remoção da água, fonte de vida, transforma as plantas, reforçando a sua capacidade de resistir até que condições mais favoráveis regressem. Os cravos secos — símbolo tradicional de boa sorte e prosperidade —, que pairam acima da superfície da água, transmitem, assim, uma mensagem reconfortante: “tempos melhores poderão não estar tão distantes”.
Quando perguntei sobre o curador por detrás da exposição, ambos os artistas respondem que foi o próprio espaço que assumiu esse papel, guiando a sua narrativa através de reflexões sobre o tempo não linear, os estados de transição, a fluidez e a agência não humana: um cenário perfeito para uma presença fantasmagórica. O fantasma que me foi apresentado por Mirna e Carlos na Figura Avulsa era gentil e acolhedor, embora um pouco melancólico.
In the Mouth of a Flowering Ghost está em exibição na Figura Avulsa, em Lisboa, até 21 de julho de 2025, mediante marcação prévia.
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