A energia é uma força frequente — inaugural, imperativa e terminal em qualquer organismo vital ou sistema virtual. Verificando que a energia da existência é uma energia vibratória[i], talvez se torne mais acertado considerá-la uma frequência. É aquilo que garante ao corpo ou à matéria o cumprimento das suas funções vitais, ademais, é a reciprocidade relacional ora entre as partes que constituem um todo, um ente, ora entre hetero-entes — um encontro extasiático, um atravessamento háptico, uma travessia que reverbera num ritmo errático. O princípio da física ritmanalítica de Pinheiro dos Santos defende que a matéria existe no ritmo e pelo ritmo. Isto não significa que a matéria tenha uma vibração, mas que a matéria existe enquanto se materializa a vibração. A regularidade da frequência é, portanto, aquilo que faz a matéria. É aquilo que parece definir o trabalho de Rui Moreira, tanto no processo criativo, como no produto final.
Energia é uma palavra que, hoje, associamos à tecnologia produtiva, à mecânica — engenho humano motivado exatamente pelo aumento da produção em benefício da diminuição da fadiga. Simultaneamente, também associamos justamente o seu oposto, a um ritmo vital[ii] — para não dizer primordial, porque não o é, embora a aceleração (pós)moderna se esforce por sugerir esse afastamento temporal — que não é exclusivamente da ordem da acção, mas sobretudo da recepção, do atravessar e ser atravessado. Este atravessamento, consequente de uma relacionalidade cósmica (ou hetrológica)[iii], articula-se numa coreografia de gestos mútuos que convocam o contacto com algo vital, onde o sujeito experiencia um deslocamento que o transporta para fora de si, que o coloca em ekstasis, frequentemente associado à ideia de transe. O transe, por sua vez, parece estar associado à noção de revelação, um estado que desvenda o que antes estava invisível. É ao adentrarmos nessa abertura que encontramos a possibilidade da liberdade, da poiesis e da criação. Esta perspectiva permite-nos articular esse estado de atravessamento (de atravessar e ser atravessado) com a prática artística e a experiência estética. Acima de tudo, permite-nos compreender que esse domínio experimental e criativo, predisposto pelo contacto com o ritmo vital, não rompe de um elemento transcendente, mas imanente onde a consciência entra em contacto com uma corrente cósmica e heterológica de energia, que dissolve a fragmentação do individual, do mesmo modo que dilui o intervalo entre o ‘eu’ e o ‘outro’ — humano, ou mais-que-humano — ou seja, entre o ‘eu’ e o ‘mundo’. Consequentemente, há um entorno, um retorno, onde a distância é considerada, mas anulada por breves momentos extasiáticos, e onde se repete o gesto que nos atravessou, que nos olhou, devolvendo-o com respeito — o verbo latino spectare, ao qual o espectáculo remonta, é um olhar voyeurístico, ao qual falta a consideração da distância e do retorno, o respeito (re-spectare)[iv]. O entorno distingue o respectare do spectare. Ora bem, o contacto com o ritmo vital, que permite a anulação das dualidades por meio do encontro respeitoso (da travessia), traduz-se, finalmente, num re-encontro com ‘eu’, num gesto de regresso que não é, de maneira nenhuma, um retrocesso, mas um ingresso num fluxo espiritual que transborda todos os domínios do sensível e os atravessa no estabelecimento partilhado “de um devir — pura energia intensiva que pode aproximar-se do transe”[v].
Serviu este longo prelúdio para introduzir o trabalho de Rui Moreira, que aparenta enquadrar-se neste processo de atravessamento heterológico, no que diz respeito tanto à sua metodologia criativa, quanto às obras respetivas, bem como à recepção contemplativa. Pelo menos é isso que retemos na exposição antológica do conceituado artista português, na Central Tejo, do MAAT. Nesta sua primeira mostra retrospectiva, reúne mais de 100 pinturas e desenhos, representativos de uma carreira com, sensivelmente, duas décadas. Em toda a extensão da exposição nota-se uma coesão estética, teorética e processual, aquilo que João Pinharanda, curador, se refere, na folha de sala, como “mitografia pessoal”. Essa procura e experiência estética e visceral foi aquilo que tentei mapear nos dois primeiros parágrafos deste ensaio. Nota-se, claramente, uma atitude teosófica evidente — desde as narrativas figurativas, às construções abstratas onde reconhecemos referências a rituais e ritmos vitais. Não são fantasias turísticas orientalistas, são gestos resultantes de uma vida viajante, e há uma diferença contrastante: “enquanto o turista geralmente se apressa para voltar a casa, ao final de umas poucas semanas ou meses, o viajante, que não pertence mais a este lugar que ao próximo, move-se lentamente, em períodos de anos, de uma parte da terra a outra, e pode não regressar”[vi]. Rui Moreira regressa, mas traz consigo tudo aquilo pelo qual foi atravessado. Percorreu e perseguiu territórios e ritmos que lhe permitissem e facilitassem um contacto com pulsões vitais — compreendendo, reforço, que a cidade e a sociedade moderna, capitalista, liberal e individualista inibem e frustram essa tentativa —, podendo participar, envolver-se e atravessar experiências catárticas, travessias. Desde as Festas dos Caretos, ritual carnavalesco, transmontano e pré-romano à passagem pelas pinturas de Vila Nova de Foz Côa; à procura por rituais tradicionais deslocados de ontologias ocidentais — entre o Japão, Marrocos, Amazónia e Índia, onde é atravessado pela performance Kathakali.
Além de uma linguagem individual muito própria, também se mantém fiel aos axiomas estéticos e éticos de cada figura, paisagem ou cerimónia — o entorno é respeitoso, não há um ego artístico que assombre algum portal, digo, obra referencial do elemento ou prática intemporal, perseguida de forma visual. Esta analogia entre a tela e o portal torna-se tangível ao percorrermos a exposição, pois compreendemos a transversalidade desta situação, e está relacionada com o gesto criativo de Rui Moreira. Na maior parte das (geralmente) enormes composições é concretamente perceptível o trabalho detalhado e minucioso que constitui a sua execução, imaginamos o processo extremamente demorado e penoso que está na base de produções tão complexas e completas, com tantos pormenores e sobreposições. Compreende-se, de imediato, o transe envolvido no processo criativo. Obcecado e obstinado, atravessado pela energia (repito, humana e mais-que-humana) dos ritmos vitais: sejam eles danças performativas; dunas desérticas esculpidas pelas condições extremas tempestivas; paramentarias abundantemente comunicativas; plantas hipnóticas. Nas produções não-figurativas geram-se esquemas esotéricos — meticulosos, intensos, viscerais e sobrepostos, iterando o processo anterior — onde não sobram dúvidas acerca da sinergia da tela-portal e da sua arqueologia, que ao ser mapeada com olhar permite-nos atravessar o mesmo transe presente no processo do artista a trabalhar.
Em nota de conclusão, a des-organização cronológica, a internacionalidade e a inter-espacialidade dos motivos — eixos vitais da obra de Moreira — transgridem estruturas temporais e atravessam passado, presente e futuro na vitalidade do gesto da travessia, sempre contemporâneo de quem faz a cortesia. Ora, assim, a repetição e a reprodução tornam-se a chave do transe em cinesia: “an after is an after that comes after an after that comes after an after… “After” is the figure of a repetition that repeats itself.”[vii]
No piso inferior da Central Tejo, Ana Léon, em Gestos mostra-nos outra energia (virtual), outros ritmos, outra travessia, aquela que se cumpre com o auxílio à mecânica e tecnologia, a do cinema, e que permite ao sujeito (pós)moderno — acompanhem-me na proposta desta teoria, arriscada por Salomé Lopes Coelho — aceder a uma “visualidade até então ocultada” através da medialidade do gesto cinematográfico. A investigadora diz-nos, também, que o gesto cinematográfico surgiu lado a lado com as investigações científicas que procuravam entender o gesto humano, i.e., o movimento do corpo no espaço e no tempo.
Léon apresenta seis stop motions, dispersas ao longo de seis salas, que projectam em loop curtos vídeos de dois, três minutos onde nada ocorre além da repetitividade do gesto: “o gesto não é nem um meio, nem um fim; antes, é a exibição de uma pura medialidade, o tornar visível um meio enquanto tal, em sua emancipação de toda finalidade. (…) Transporta o significado, mas não é o significado em si: ‘não tem precisamente nada a dizer porque o que mostra é o ser-na-linguagem dos seres humanos como pura medialidade”[viii]. Parece que é exatamente isso que a artista nos oferece — a possibilidade de voltar a entender a imagem em movimento como mediadora do gesto que, por sua vez, é pura medialidade em si. Sem folha de sala, discurso ou explicação seguimos uma sequência de curtos videos, onde um conjunto de bonecos Action Man, coreografados por Léon, repetem infinitamente o mesmo gesto — o que nos aproxima desta reflexão acerca do “meio sem fim” do gesto humano e do gesto cinematográfico[ix]. Estando delegados a um gesto por sala, seguimos uma sequência (que não obriga à linearidade) que se desdobra na descrição do gesto encenado — única informação cedida pela artista —: Tomber, Se Retourner, Se regarder, Percevoir, Se Dédoubler, Avancer. O que todas estas palavras têm em comum é o facto de estarem relacionadas com ‘movimento’, físico ou psíquico. Mais, o prefixo ’se’, em algumas delas, revela-nos a coesão do que parecia disperso — os verbos estão associados, acima de tudo, a um movimento de auto-consciencialização, numa experiência lúdica que parte da pura medialidade do movimento físico para a “visualidade até então ocultada” do ‘eu’, através do gesto cinematográfico.
Transe, de Rui Moreira e Gestos de Ana Léon estão patentes na Central Tejo, no MAAT, até 2 de Junho de 2025.
Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.
[i] De acordo com Lúcio Pinheiro dos Santos (1889-1950), filósofo responsável pela primeira teoria da ritmanálise.
[ii] Cf. Coelho, S. L. (2020). O gesto da travessia e o contacto com o ritmo vital: Sobrevivências do ekstasis no cinema. Tese de Doutoramento em Estudos Artísticos, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
[iii] A franca heterologia não é uma projeção da alteridade, nem tão pouco uma encorporação ontológica — mas uma imaginação coletiva e cooperativa, liminar e atravessada, ou seja, uma hétero-travessia composta no plural. Ou, pelas palavras de Bataille, heterologia remete ao conceito de dépense improductive (energia improdutiva), i.e. tudo aquilo que é ignorado pela ciência. A partir daí constrói a sua ‘ciência do heterogéneo’, uma abordagem que desafia o método abstrato da ciência, que apresenta a ontologia como fixa e homogénea.
[iv] Han, B. (2018) No Enxame: Perspectivas do digital. Tard. Lucas Machado, Petrópolis: Editora Vozes, p.13.
[v] Gil, J. (2018), Caos e Ritmo. Lisboa: Relógio D’Água, p. 214.
[vi] Bowles, P. (1990). The Sheltering Sky. Harper & Row, p. 7.
[vii] Schuback, M. S. C. (2020). Time in exile: In conversation with Heidegger, Blanchot, and Lispector. State University of New York Press, p.69.
[viii] Agamben, Giorgio (2018), Por uma ontologia e uma política do gesto, Caderno de leituras N.º 76. Belo Horizonte: Chão da Feira, p.3 e 58.
[ix] Importa aqui referir o trabalho lento e moroso que esteve envolvido na produção destas stop-motions, pelo menos estas seis foram desenvolvidas ao largo de 10 anos (2014-2024). O gesto que se repete, o gesto da artista, é o da travessia — a coreografia envolvida na produção destas obras, vinculada numa prática (artística) de análise de ritmos, espaços e tempos, pode formular uma travessia, aquilo que seria a deslocação da visão do ‘eu’ fora de si, para ‘si’, tal como encena com os bonecos.