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Para Todos Vocês com Fantasias, de Diogo Nogueira
DATA
21 Mai 2025
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AUTOR
Carla Carbone
Na exposição de Diogo Nogueira, Para todos vocês com fantasias, patente na Galeria Municipal em Almada, a identidade dos corpos é moldada na paisagem. Conformando-se na ideia do colectivo e na busca de novas formas de vivermos juntos, de sermos comunidade.

Em Fenomenologia da Percepção (1945), de Maurice Merleau-Ponty[1], a afonia é um estado de mudez, resultante de um desejo reprimido.

A boca é o lugar, por excelência, de exteriorização, comunicação, e conexão com o outro, e com o mundo. A boca também é extensão e veículo de expressão, por vezes erotizado, outras vezes politizado[2], do ser para o mundo (referência a Alexander Rodchenko, e cartaz construtivista Lengiz, 1924).

Talvez não seja por acaso que, na pintura de Diogo Nogueira, corpos masculinos, desnudos se dirigem ao encontro de outros, e golpeiem, no ar, jatos de água, ou abundante saliva. Inoculações partem, certeiras, da boca de uns, em direcção a corpos de outros. Artistas houve que, na incomensurabilidade da sua arte, e no empenho da sua liberdade artística, evocaram, nas suas propostas (algumas dadaístas) referencias à boca, e à fonte, esta última, um recurso inesgotável na arte do século XX.

Mais do que uma pulsão física, um jorro orgânico, de impulsos básicos, do corpo desejante para o corpo desejado (ou a fantasia de outros corpos), exprime a configuração psicológica, o modo de se dar ao mundo, ou a forma de firmar a sua existência.

Há uma frase de Merleau-Ponty que parece engastar-se, entretecer-se nas pinceladas generosas e fartas de Nogueira. Ou pelo menos eu gosto de pensar que se inflecte, ou imprime nas cores voluptuosas, e lânguidas, que ocupam as telas do artista: É a sexualidade que faz com que um homem tenha uma história. Se a história sexual de um homem oferece a chave de sua vida, é porque na sua sexualidade é projectada a sua maneira de ser a respeito do mundo, quer dizer, a respeito do tempo e a respeito dos outros homens[3].

Ou ainda: Quando se generaliza a noção de sexualidade e se faz dela uma maneira de ser no mundo físico e interhumano, quer-se dizer, em última análise, que a existência inteira tem uma significação sexual, ou que todo o fenómeno sexual tem uma significação existencial?[4]

A voluptuosidade que o artista enaltece, e nos oferece, em desfrute, talvez repouse numa alva propensão para os prazeres partilhados dos corpos. No sonho tudo é possível, mas nas pinturas de Nogueira, o deleite proporcionado é representativo do altruísmo do artista, pleno de generosidade e amor, autêntica oferenda para nós, em sedução subentendida e liberdade invocada.

Existem ânsias de comunhão, ou comunidades que, em harmonia, poderiam, sem julgamentos, apreciar, fundidos na paisagem, o desfrute, a alegria, e o prazer de viver intensamente.

Na exposição de Diogo Nogueira, Para todos vocês com fantasias, patente na Galeria Municipal em Almada, a identidade dos corpos é moldada na paisagem. Conformando-se na ideia do colectivo e na busca de novas formas de vivermos juntos, de sermos comunidade.

Nesta confrontação, apercebemo-nos de uma vivência agrilhoada em espartilhos que limita o poder redentor e revigorante dos sentidos, da volúpia, da sensualidade.

É uma significação existencial, mas também chave da vida, do mundo palpável, extasiado, fisiológico, progressista, e arrebatador.

O cuspo, que se lança, e enlaça, e salta, vigoroso, da boca dos protagonistas erotizados, articulados na folhagem das pinturas, é irreverente e se consubstancia numa intensa iconografia que desafia e subverte as convenções.

Os corpos de Nogueira, contorcem-se, bailam despudorados. Quase entrevemos os risos e brincadeiras dos personagens. Empoleiram-se em galhos verdes, contorcem-se. Denunciando, porém, imersos em cores vivas, uma certa melancolia. No entanto, o artista nunca começa uma pintura com a intenção de transmitir uma mensagem clara ou fechada. Não lhe interessa ilustrar ideias nem impor significados ao espectador. O seu processo é, acima de tudo, intuitivo e fluido[5].

Na pintura de Diogo Nogueira vemos estímulos que nos conduzem à menção de obras do passado. Manet? Matisse? Os impressionistas… David Hockney? Influem no seu modo de olhar, operar.

A história da pintura está profundamente presente no trabalho de Nogueira. O artista diz-nos: Não consigo imaginar o meu percurso como artista sem essa herança — tanto os grandes mestres que marcaram os cânones da arte como outros autores menos celebrados, que vou descobrindo ao longo do tempo, desempenham um papel formativo no meu olhar. Tenho um amor declarado pela pintura clássica e moderna, mas não me restrinjo a um único período. De certa forma, acredito que há algo de vivo e ainda pulsante em cada momento da história da arte, e tento escutar essas vibrações enquanto trabalho.

A pintura de Diogo Nogueira, nos aspectos mais formais, tem vindo, progressivamente, a sofrer uma influência dos artistas impressionistas e pós-impressionistas. Interessa-lhe a iluminação quase fotográfica; em Matisse, a liberdade da cor e a alegria da forma; em Cézanne, os banhos — compostos com monumentalidade e delicadeza; em Degas, os ambientes cromáticos e as tensões compositivas dos seus trabalhos de juventude; em Caillebotte, o erotismo latente — embora, na verdade, esse erotismo possa ser apontado em todos os nomes referidos[6].

O artista almeja, que a sua pintura transmita, cada vez mais a esperança, e a alegria.

E evoca Adélia Lopes: “O mal é banal. / O único mistério / é o mistério do bem.”

Acrescenta: Talvez pela abundância do mal tenha dúvidas sobre o rumo que a história humana parece querer tomar. Ainda assim, tenho um amor profundo pelo humano — em particular, pela sua arte. Há uma grande beleza em estar vivo, uma beleza natural que desejo celebrar. Acredito, em parte, que pinto por isso: para celebrar, mesmo no mal, a beleza.

Mas é com o passado que o artista consubstancia o futuro, e o conduz a um amor pelo humano: Acredito que a Arte é exclusivamente Humana, diz-nos (…) Produzir uma imagem é para mim uma forma de ver novos mundos. Ver o que pode ser, e não apenas o que é (…) Fascina-me a ideia de trabalhar temas que atravessaram séculos de pintura — o nu, a festa, o êxtase, a comunhão com a natureza — e reinterpretá-los a partir do presente. (…) Estou em conversa com o que já foi feito, mas também a tentar abrir espaço para o que ainda está por dizer[7].

A exposição Para Todos Vocês com Fantasias, de Diogo Nogueira, está patente na Galeria Municipal de Almada até dia 31 de maio.

 

 

[1] Merleau-Ponty, M (1999). Fenomenologia da Percepção. Martins Fontes

[2] Temática Queer, como ato político, no caso do artista Diogo Nogueira

[3] Merleau-Ponty, M (1999). Fenomenologia da Percepção. Martins Fontes

[4] Ibidem

[5] Palavras do artista.

[6] Palavras do artista.

[7] Palavras do artista,

BIOGRAFIA
Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador.
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