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Maleáveis Agoras
DATA
27 Mai 2025
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AUTOR
Tomás Camillis
A mostra do prémio PIPA, O Brasil São Muitos, converge artistas de diversos contextos e inclinações para articular, de maneira sobretudo política, o atual cenário brasileiro.
Apaixonante de facto é o Brasil, cuja invejável plasticidade o abre à multiplicidade do que é, também o sujeitando às identidades falaciosas que nos simplificam. Seus numerosos passados e futuros conservam-no à margem de seu próprio destino, inebriando-o pela amplitude do horizonte que, frustrado, não consegue alcançar. Viver à porta do próprio futuro é justo a atitude democrática, onde o humano deve, por conta própria e fora de determinações externas, decidir o seu destino. Ao exercício desta crença chamamos política que, sempre falha, ao menos é franca — se outros regimes centralizam decisões na mão de poucos, a democracia é a clareza de um processo público em constante experimentação. Não à toa democrática é a modernidade, onde nada conserva uma essência estável pois tudo é flexível e visa realizar a sua potência. Entende-se o passado para, no manejo do presente, conceber o futuro — nasce a história, que nos remove do tempo cíclico da natureza e nos lança à linearidade dos projetos humanos.
O drama político atual dá-se, também, pela inaptidão de empregarmos esta liberdade. O fim da história por Fukuyama proclamado de facto realizou-se: a sociedade deixou de dialogar consigo, estagnando no invencível agora do capitalismo. Uma esquerda esquecida de visionar novos modelos resignou-se a corrigir os excessos de uma direita apaixonada pela manutenção do mesmo, que nos incute o medo do desconhecido e promove o conforto permanente como a maior das aspirações. Questionada a coerência do tempo moderno, haveria espaço para outras possibilidades? O fim das grandes narrativas de Lyotard é também a descrença no impecável futuro, abrindo espaço à multiplicidade das pequenas narrativas que convivem simultâneas num presente anacrónico a si. O Brasil é a própria simultaneidade, e talvez tenha tido os seus lampejos de modernidade para preparar a sua dissonância pós-moderna, como quando Euclides da Cunha questionou a sua modernidade ao contemplar a força do jagunço no cadáver de Antônio Conselheiro. Atenta a isto tudo, a curadoria de Luiz Camillo Osorio busca na pluralidade de discursos a sinergia de um outro entendimento.
Embora múltipla, os movimentos da arte moderna buscavam contornar a totalidade do espírito atual — seu inocente heroísmo buscava as novas formas que, enfim, nos tornariam modernos. A arte contemporânea é tanto a sua herdeira quanto opositora. Mais fragmentária, sua falta de ímpeto é o atestado do fracasso moderno, mas também uma clareza ante a precariedade das estruturas humanas. Sua humildade é mais afeita à convivência dos distintos, mas é incapaz de exercitar novas sínteses, mesmo que incoerentes e contraditórias — permissiva em demasia, aproxima-se do irónico que relativiza as qualidades do que poderia alicerçar-nos. A nossa descrença em parâmetros artísticos advém não de um coletivo múltiplo, mas de uma falta de assertividade escondida sob o véu da ironia. Como unir o ímpeto heróico da arte moderna com a simultaneidade interpretativa da arte contemporânea?
A política talvez seja a mais apaixonada das atividades, pois nos exige o fervor dos argumentos defendidos em aberto. A clareza democrática compara visões de mundo e projetos de futuro pois conserva uma esperança no amanhã estranha à ironia, que tantas vezes esquece o seu viés subversivo para esconder o real sentido das coisas sob o cinismo dos jogos gratuitos. Não à toa a rispidez satírica da pop art foi suavizada pelo mercado da arte, que dela se apropriou para acentuar os seus aspectos mais despreocupados — o capitalismo prefere obras que simplifiquem temas relevantes pois visa conservar o verniz da mudança para melhor promover a permanência. E, portanto, algumas das obras aqui expostas, que articulam temas sociais sob a ótica pop, antes favorecem os mecanismos da propaganda: a imagem apelativa, o entendimento imediato, a conclusão evidente, o exagero excêntrico. No mundo do espetáculo a atenção não é percepção enriquecida, mas hipnose esvaziada. Ainda assim, artistas como Denilson Baniwa acentuam o ângulo crítico do pop, tanto ironizando o capitalismo quanto subvertendo estereótipos do contacto entre culturas. Também exercita a dimensão expressiva da prática artística, costurando interessante relação com Arjan Martins, mas se Baniwa contesta o tempo moderno no desenho de petróglifos e rituais indígenas, Martins articula símbolos hegemónicos mediante a subjetividade de quem foi por eles oprimido, impondo a interpretação periférica sobre o cânone histórico.
Oposta à propaganda, a arte está repleta de estranhas entidades, com estranhos discursos. Não se submete ao esperado, mas exige-nos, para ser compreendida, uma suspensão de preconceitos e uma transformação íntima. A mesma liberdade política que o coletivo exerce na busca por outros regimes sociais, o artista emprega na concepção de formas que nos abram outros modelos existenciais. Ambos partem do sujeito para moldar o sujeito, realizando suas potências ainda latentes. Pois somos sempre metade, Emerson escreve, a outra metade é nossa expressão, e “a experiência de cada época exige uma nova confissão, e o mundo parece sempre à espera de seu poeta”.[1] Para operar esta nova confissão, o poeta divorcia-se das convenções que determinam a nossa existência para, em sua prática, reaprender a pensar — a obra é o resultado de um processo indefinido, apenas permitido à experiência artística. Sua prática, ao invés de ilustrar temas políticos, é o próprio exercício político que conduz os temas ao seu máximo potencial, transformando ideias em conteúdo. O artista não aborda a arte através da política, mas a política através da arte, onde o valor plástico não é o adorno gratuito do discurso, mas justo o seu fundador conceitual — da mesma maneira, uma obra mal construída empobrece temas relevantes em conteúdos simplistas. A produção coesa de obras completas promove um mundo fechado de relações estáveis, típico de uma renascença no limiar entre o humanismo e o religioso onde o intelecto humano visava apenas melhor compreender a estrutura da criação. Mas se a modernidade acredita não sermos determinados por agentes externos, toda a civilização advém do sujeito — mesmo os mais íntimos gestos reverberam na esfera pública, nas circunstâncias que nos realizam e são por nós realizadas. E a arte efetua o seu impacto sempre no sujeito, filtro para onde tudo vem e de onde tudo vai. Não é em seus temas que a arte se torna política, mas em sua atitude. A democracia não regressou ao ocidente na Revolução Americana, antes foi anunciada nos non-finitos e pinceladas de Ticiano, Velazquez e Rembrandt. Não à toa, talvez, Leticia Ramos assimile o acidente em suas obras, promovendo tanto o contacto entre o desconcertante e o científico. A resistência das dinâmicas naturais ante os projetos humanos tingem o nosso ímpeto por domínio com a mais aberta subjetividade.
E assim como a sociedade aprende a pensar na praça pública e o artista em sua prática, também o espectador é pela confissão da obra transformado. A arte que o entende como um receptáculo passivo de ideias assume uma paradoxal postura autoritária de sistemas restritivos e sentidos fechados. Mas a postura democrática da obra política de fato visa emancipar o sujeito dos dogmas que governam o nosso entendimento. Obras panfletárias sempre carregam um narcisismo simbólico pois não questionam os seus próprios discursos, ao invés de aceitar as novas leituras que a prática artística e a interpretação do espectador promovem. O artista que visa apenas a sua própria redenção moral fala através da obra sem permitir que a obra fale por si, embora a arte seja talvez a única disciplina capaz de articular a ambiguidade da experiência humana — não podemos eximirmo-nos de nossa própria perspectiva, e quando nenhuma verdade é absoluta, tudo o que temos é a confiança em nossos próprios recursos imaginativos. A arte é capaz de conservar um enigma que supera a mensagem informativa, uma sugestividade ao além de expectativas ou compreensão intelectual, mas que ainda assim ressoa com a potência do genuíno. Na obra Em Profundidade, Alice Miceli articula certas perspectivas sobre um tema que, embora acessível, jamais é por inteiro nomeado. Sua sequência evoca uma mesma imagem que persiste apenas no exercício da mudança, equilibrando o permanente e o transitório para explorar a natureza do trauma. Fotografar minas é negociar com a presença do ausente, também temporal: o passado sempre delimita os movimentos do presente — como os sinais fúnebres que são os pontos focais de suas imagens, o ímpeto moderno rompeu com a influência do ontem para melhor fixar utopias, sem perceber repetir as mesmas catástrofes. A recorrência dos eventos selvagens verga o tempo linear de volta ao círculo. Caminha-se entre minas com o auxílio de um método racional, mas a cada passo reafirma-se a fragilidade das estruturas humanas, como as delicadas fitas que a separam das minas. Talvez então suas obras mensurem a distância para calcular o intervalo até a próxima tragédia — se não há narrativa, há ao menos suspense. Tal estado de suspensão é também a atitude poética, na miopia cotidiana abrindo lacunas formativas que estimulem o espectador a ponderar o coletivo.
A exposição O Brasil São Muitos: um recorte da coleção do Instituto PIPA está patente no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional até 15 de junho de 2025.

[1] Emerson, Ralph Waldo. In. Rancière, Jacques. (2013) Aisthesis: Scenes From the Aesthetic Regime of Art. Verso, p. 63.
BIOGRAFIA
Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.
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