Em seu texto seminal Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud, Thomas Laqueur, historiador estadunidense, traça um panorama histórico da forma como a sexualidade feminina foi contemplada pela ciência ao longo dos séculos. Se no século 17, a teoria do sexo único entendia as morfologias masculinas e femininas como variações de uma mesma morfologia, no século posterior estas eram já reconhecidas como construções estruturais distintas. Ao perceber que, contrariamente à biologia masculina, o corpo feminino não depende do orgasmo para engravidar, o estudo aprofundado da biologia feminina passa a ser negligenciado pela medicina. Do ponto de vista cultural, percebemos essa alteração como uma evidente postura que traça a relevância social e representação (nas artes visuais, literatura, cinema etc.) da mulher como intimamente associada à sua fertilidade e sexualidade, além de cristalizar um posicionamento da mulher como o outro, o misterioso.
Entre os Vossos Dentes mostra o retrato de duas vivências femininas separadas pelo Atlântico, mas unidas pela experiência feminina universal da ferida e da coragem. A seleção curatorial, assinada por Adriana Varejão, Helena Freitas e Victor Gorgulho, expõe um diálogo que não só contrasta as obras de Varjão e Rego, mas abre pontos de acesso ao corpo e ao papel histórico feminino não pelo viés da reprodução ou da uberdade, mas sim da interioridade corporal. A intimidade é, assim, guiada também por suas entranhas etimológicas: no interior, nas vísceras, no intestino.
O corpo feminino é apresentado com a pele rasgada e as entranhas à mostra. Na contraposição das obras Mapa de Lopo Homem e Filho bastardo II (Cena de interior), de Varejão, com A primeira missa no Brasil, de Rego, vemos o retrato da ferida do colonialismo português através do papel desempenhado pela mulher nesse contexto. A extensa ferida, carnuda e pulsante, que rasga o mapa criado por Varejão, e os olhos vazios e a ambivalência narrativa (o que estamos observando? Um aborto?) da personagem de Rego encapsulam a silenciosa história das mulheres na história do mundo: a história da dor. Como refere a crítica e curadora Elena Crippa no seu texto Não podemos libertar-nos sem corpo: “Paula Rego e Adriana Varejão experimentaram em primeira mão a forma como o poder atua sobre aqueles que não o possuem”.
Não é incomum que a figura da mulher seja tradicionalmente colocada como acessório ilustrativo, quando a arte se encarrega de contar conquistas e revoluções históricas; ou mesmo como personificação de territórios conquistados, como é o caso da gravura América, de Jean Van der Straet (em que o território colonizado da América é representado como uma mulher nua que recebe Colombo e as caravelas deitada sobre uma rede), ou das alegorias de François Boucher, em que os continentes África e América são também mulheres despidas. Em Entre os Vossos Dentes, Rego e Varejão exploram o sangue, as vísceras e o aborto como formas de representação do corpo feminino nas imagens históricas. Vemos corpos que servem a si mesmos, à sua própria história. Nas palavras do curador brasileiro Rafael Fonseca: “Eis uma forma de produzir imagens que também possibilita aproximar e distanciar Rego e Varejão: suas habilidades de pesquisar, analisar e manipular diferentes iconografias, contos e, claro, mistérios”.
Fonseca também escreve em seu texto sobre a exposição que o ato de misturar imagens e signos de diferentes períodos é um trabalho de descanonização da imagem que, neste caso, pode ser expandida para a descanonização de como o corpo feminino é explorado no papel de personagem e agente. Podemos observar esse posicionamento como parte de um movimento contemporâneo coletivo do olhar interiorizado da mulher. Discussões sobre perimenopausa e menopausa, por exemplo, vêm dominando a discussão cultural de forma inédita, como podemos ver em On All Fours, da escritora estadunidense Miranda July. O mesmo vale para a renascença do gênero cinematográfico gore, dessa vez especialmente aplicado ao corpo feminino, como foi o caso de outro sucesso da crítica, o filme da diretora francesa Coralie Fargeat, The Substance. Ambos os trabalhos citados são de 2025. Neste sentido, a curadoria de Entre os Vossos Dentes ecoa uma macrotendência de reposicionar a conversa do corpo das mulheres de um ponto de vista interno e estéril – o corpo que existe por si só e para si mesmo, negando-se a servir aos desejos de ser consumido ou do serviço conceptivo da sociedade.
É impressionante observar a leitura da dinâmica colonial Brasil-Portugal pela exploração interna do corpo, uma leitura que é ampliada quando os trabalhos de Rego e Varejão são colocados lado a lado. Em Testemunhas oculares X, Y e Z, Varejão faz referência às pinturas de castas mexicanas que pretendiam classificar a miscigenação durante a colonização espanhola. As mulheres retratadas – cada uma simbolizando um dos territórios coloniais portugueses – exibem um buraco sangrento onde um de seus olhos foi removido. Ao lado dos retratos, os olhos estão expostos e carregam, dentro de si, pequenas imagens de atropofagia, emulando a técnica de optografia forense em que a íris é removida e estudada de forma a resgatar a última imagem vista em vida. A carne exposta dessas mulheres anónimas, acompanhada das misteriosas cenas contidas em seus olhos removidos, reverbera as diferentes cenas de Vasto mar de sargaços, em que Rego retrata vários episódios protagonizados por personagens também anónimas no que parece ser um encontro familiar ou de uma comunidade. Não é possível discernir o que está acontecendo em cada uma das cenas, mas uma sensação inquietante de tensão e doença (com corpos retorcidos como se estivessem a desmaiar ou vomitar) domina o cenário narrativo. No centro, uma mulher que parece estar dormindo, ao mesmo tempo que emana sensualidade, contrasta com a personagem diretamente abaixo de si: outra mulher, agora em vestido de noiva. O escancaramento da dominação física do corpo amplia a dominação psicológica nas mulheres forçadas a desempenhar papéis sociais no quadro de Rego, assim como o arranjo social deste amplia a perversão de uma sociedade que explora e subjuga outros seres humanos como os retratados por Varejão.
A exposição é encerrada com a figura da sereia, uma criatura mitológica que resume em si diversas das características do papel histórico desempenhado pela mulher: o papel da outra, a misteriosa, a sabotadora, a sobrenatural. A sereiazinha e Sereia, de Paulo Rego, dialogam com Pérola imperfeita de Varejão, e vemos figuras tanto desoladas quanto deslocadas, ocupando o lugar antes destinado às sirenas. E, coroando esse retrato, estão as Flying Mermaids, sereias de corpo seco e geriátrico que desfrutam a liberdade absoluta de servirem apenas a si mesmas.
Ao reunir Rego e Varejão, a exposição devolve à carne o poder de ser linguagem, à dor o estatuto de memória e à intimidade o direito de voz – das vísceras às sereias.
A exposição pode ser visitada no CAM da Gulbenkian até dia 22 de setembro.