Uma dança, baloiçante, entre mãos e olhos, ocupa uma das maiores salas da exposição …On Thin Ice de Noé Sendas, patente no MNAC, com curadoria de João Silvério.
Estes trabalhos revelam a prática intensa do artista no desenho. A série, de título, Hand-Eye, é constituída por um conjunto de desenhos em que a mão e o olho são o tema central. Pelo foco nestes dois elementos, primordiais nas artes visuais, e pela essencialidade com que são tratados, cobre-se a exposição de silêncios, sopros, aparições, sombras e luz.
A um ritmo cadenciado vão surgindo desenhos sinuosos de mãos: mãos como molduras, mãos cujas pontas dos dedos brincam com olhos, olhos vivos e indagantes. Nos contornos das mãos desenhadas por Sendas, e neste jogo de revelações e ocultações, descobrem-se erros, tentativas de representação de formas, duplicação de linhas, todo um histórico de um desenho, configurado, consubstanciado por uma vibração que o articula aos demais, e a todas as outras peças presentes na exposição.
Este olhar pendular, que nos faz cativos, e nos torna ativos - ‘que seria da visão sem qualquer movimento dos olhos?’, questionava, certa vez, Merleau-Ponty - remete-nos para uma bela instalação de Noé Sendas, presente também nesta exposição. O artista, para a concretização da instalação, recorre a uma obra já existente no acervo do museu. Judite (1944), um busto de autoria de Joaquim Valente, exibe uma jovem de rosto dócil e cabelos delicados. A cabeça da figura, em gesso, foi concebida para ser exibida de frente. A retaguarda da escultura revela uma forma inacabada, onde se pode ver o interior, e apreciar as imperfeições e marcas que o escultor deixou outrora impressas, aquando da sua elaboração. Noé Sendas decidiu rodar o busto, posicionando-o virado para a parede, ocultando assim o rosto de Judite. No entanto, um espelho, posicionado à sua frente e fixado sobre a mesma parede, revela tenuemente o rosto tão ansiado e infantino da jovem.
A nós cabe o esforço de reconfigurar o rosto de Judite, de reunir os ínfimos fragmentos deixados pelo artista, tornando-os uma unidade coesa. Por muito que nos esforcemos, o rosto nunca é apreendido na sua totalidade, como o é na sua origem.
A ausência de completude das imagens fornecidas por Sendas conduz o observador a uma necessidade de recriar, de gerar novas imagens e interpretações com sentido, num mundo repleto de imanência e idealidades1. Porque somos nós que trazemos as representações do mundo. O meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível2. Em Judite, o corpo que observa também pode olhar-se3, por confusão, por narcisismo4.
Este rosto suspenso é parte integrante de um conjunto de muitos outros retratos impossíveis a que o artista nos tem habituado. Como na instalação The Rest is Silence II (2003) e On Thin Ice (2025), onde um corpo deitado, de rosto tapado, e com as dimensões do artista, surge vestido de roupas de inverno e botas de ski, os rostos das personagens surgem ocultos.
A bela Judite, por outro lado, também nos remete para a ideia de imaterialidade da arte. O artista relembra a frase de Benedetto Croce: “O belo não tem existência física”5, citada por Denis Huisman, na obra A Estética. O próprio Huisman também se refere, do mesmo modo, à sensibilidade estética: “o objecto não conta: só conta o sujeito”.
Deste modo, aquele que contempla recria a obra a seu modo e aquele que a cria contempla-a antes de lhe dar forma6.
A incompletude pode ser também observada, nas obras SniuR (table), 2025, e After SniuR, 2025, entre outras que apresentam desenhos polycromos acompanhados por colagens e impressões offset de figuras (ou bustos) da antiguidade clássica, presentes na exposição, agora patente no MNAC.
João Silvério explica que Noé Sendas revela referências explícitas e implícitas a artistas, criações literárias, cinematográficas e musicais nas suas obras, assim como o recurso ao corpo como referencial, aos desafios perceptivos e aos mecanismos expositivos.
O curador esclarece ainda que a exposição é acompanhada, além das obras inéditas de Noé Sendas, por obras e registos de outros artistas presentes no acervo do MNAC. Logo no início da exposição encontra-se exposta uma fotografia do designer, artista e fotógrafo Fernando Lemos, A Mão e a Faca, 1949. A estranheza, a tensão contida na fotografia, antecipa o gesto que, inequivocamente, conduzirá a um desfecho sombrio. Outras obras presentes na exposição são: Cena esfolada (1949), do mesmo autor; Atelier (1916), de Aurélia Sousa; Elles (1896) de Henri de Toulouse-Lautrec; Estudo para Velho do Restelo (1901) e Fugindo as Ninfas vão… (1900), de Columbano Bordalo Pinheiro.
…On Thin Ice, conforme o curador refere, desenvolve-se assim no seio de uma actualidade mergulhada na incerteza e fragilidade.
A exposição está patente no MNAC até dia 27 de setembro.
1 Ponty, M. (2018) O olho e o espírito. Passagens. Nova Vega, 10ª edição. pág 20
2 Ibidem
3 ibidem
4 Ibidem
5 Huisman, D. (2013). A estética. Edições 70, Lda. Lisboa. Pág. 83
6 Ibidem