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Entrevista a Vera Appleton: 18 Anos da Appleton
DATA
20 Mai 2025
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AUTOR
André Catarino
Antes de falarmos da exposicão Diante do Tempo, inaugurada dia 12 de Abril, e que marca precisamente os 18 anos da galeria, gostaria que falássemos primeiro sobre o percurso da Appleton. Como é que, ao longo destes anos, se foi consolidando como um espaço de divulgação e experimentação em várias áreas artísticas? Quais foram os principais desafios e conquistas?

Maria Inês Augusto: Antes de falarmos da exposição Diante do Tempo, inaugurada dia 12 de Abril, e que marca precisamente os 18 anos da galeria, gostaria que falássemos primeiro sobre o percurso da Appleton. Como é que, ao longo destes anos, se foi consolidando como um espaço de divulgação e experimentação em várias áreas artísticas? Quais foram os principais desafios e conquistas?

Vera Appleton: O principal desafio tem sido, desde sempre, a sustentabilidade. Estamos numa área que está sub-orçamentada e isso, por si só, já levanta imensas dificuldades. Mais do que lidar com os artistas, com o grau de experimentação que assumimos ou com questões práticas como as montagens, o que pesa mais é sempre o financiamento. No fundo, trata-se de financiar um projecto, como se financia um hospital ou uma escola — é importante que se perceba que isto também é serviço público. A verdade é que não se pode depender unicamente da DGArtes. Por outro lado, o financiamento privado em Portugal é muito escasso. O espírito de mecenato, de filantropia — de dar sem esperar retorno — praticamente não existe e agarrar essas oportunidades é um trabalho árduo. Já estivemos quatro meses encerrados por falta de apoio, e só conseguimos manter a estrutura graças à dedicação dos mecenas. Em relação a conquistas, gosto de pensar que, para um artista, passar pela Appleton é uma experiência positiva. Talvez essa seja a nossa maior vitória: termos conseguido criar um espaço por onde se quer passar, com uma programação coerente, profissional e ética. Com o tempo, a Appleton consolidou-se como um lugar com identidade própria, onde os artistas têm liberdade para criar. Isso é fundamental. Outra conquista que considero essencial é a luta pelos fees dos artistas. Durante muito tempo, pagava-se ao curador, aos técnicos, a quem escrevia e o artista trabalhava de graça. Desde o início, mesmo sem apoios, tentámos contrariar isso. Às vezes eram 500 euros, pouco, mas era o que conseguíamos. Muitas vezes, fui buscar apoios paralelos só para garantir esse valor. Hoje temos um programa com dez exposições comissionadas, o que nos permite apoiar diretamente a criação e dar aos artistas condições reais para trabalharem com autonomia. E acredito que isso se nota no resultado final: na programação, no respeito pelo trabalho artístico.

MIA: Relativamente à programação precisamente, como é que se consegue garantir uma curadoria tão diversa e ao mesmo tempo assegurar a qualidade e a relevância das exposições e eventos?

VA: A programação da Appleton é pensada com bastante antecedência. Os artistas chegam de várias formas: por propostas directas, por visitas a ateliês, por exposições que vamos vendo. Vamos construindo uma lista, com nomes que nos interessam, e depois pensamos nas combinações possíveis, sempre com uma preocupação com a coerência, a diversidade e também a paridade. O que nos interessa é ter um equilíbrio entre jovens artistas, artistas em mid-carrer e outros mais consagrados. E é importante dizer: nunca quisemos que a Appleton fosse um espaço elitista — pelo contrário, é um lugar aberto, democrático, onde há espaço para o inesperado. Mesmo que o nosso core não seja exactamente lançar jovens artistas, já tivemos várias primeiras individuais e continuamos atentos a esses percursos. Também não seguimos uma lógica temática rígida, mas interessa-nos perceber o que está a preocupar os artistas neste momento. Questões sociais, políticas, culturais — não sei o que vão fazer, mas sei que estão a pensar sobre certos temas, e isso já é um motor para os convidar. E depois há uma liberdade total na forma como trabalham — isso é fundamental para nós. Às vezes surgem tendências inesperadas — houve um ano em que quase todos os artistas queriam apresentar vídeo, mesmo aqueles que vinham da pintura. Este ano, por exemplo, temos muito menos audiovisual e muito mais pintura. E isso diz muito sobre o momento que se está a viver. Acho que a Appleton, com o tempo, se tornou também um reflexo dessas correntes — quem olhar para o seu percurso pode perceber o que se estava a passar na arte contemporânea em Portugal. E isso é uma conquista importante. Claro que há limites, sobretudo físicos, mas tirando isso, tudo o que é possível, acontece. Essa liberdade é mesmo essencial aqui.

MIA: Como é que avalias o impacto da Appleton no panorama artístico português? Da importância de associações culturais como a Appleton no desenvolvimento e promoção da arte contemporânea em Portugal?

VA: A Appleton e associações como a Appleton desempenham um papel importante na contextualização e promoção do que se faz nas artes em Portugal. O sistema artístico é muito dividido em dois: de um lado estão as galerias comerciais, que ligam os artistas ao mercado e permitem a sua sobrevivência económica; do outro, os museus, que funcionam como instituições de legitimação e atribuem valor simbólico. Ambos são essenciais, mas não chegam. É por isso que os espaços independentes são tão importantes — porque existem nesse lugar intermédio, que não está nem sujeito às lógicas do mercado, nem à rigidez institucional. Esses espaços permitem uma liberdade real — são lugares de experimentação, onde se pode arriscar, falhar, testar ideias. E é por essa liberdade que são absolutamente necessários, não arrumam as coisas, não seguem uma lógica fechada, permitem que aconteça o inesperado. Mas essa liberdade tem um custo. Se não há vendas, como se assegura a sustentabilidade? É preciso financiamento, e aí a realidade é dura. As grandes empresas só investem onde há visibilidade e retorno imediato — o que deixa os espaços independentes fora do radar. Como já referi, os programas públicos, como o da DGArtes, apesar de fundamentais e até bem vistos lá fora, continuam a ser insuficientes — sobretudo nas artes visuais, que estão sempre no fim da linha de apoio, atrás do teatro, da música, de outras áreas. Há ainda aquela ideia persistente de que nas artes visuais se faz com pouco, mas a verdade é que todos precisamos de sustento: os artistas, os produtores, os curadores. Eu própria trabalho a tempo inteiro para a Appleton. Há equipas envolvidas, há famílias. E é por isso que é urgente dar atenção real a estes espaços independentes, que são mesmo uma peça essencial na arte contemporânea.

MIA: Sobre o que aconteceu dia 12, foi um dia muito bonito em Elvas, com dois momentos distintos. Comecemos por falar da performance do colectivo Osso Exótico, na Cisterna. Como é que esta ideia surge?

Os Osso Exótico são um grupo muito interessante. O André e David Maranha, Patrícia Machás, Francisco Tropa e Manuel Mota são todos bastante diferentes entre si e têm desenvolvido um trabalho discreto, mas sempre de enorme qualidade e muito especial. Desde o início que sabia que os queria na exposição, só não sabia ainda como. A ideia inicial era incluí-los de forma fixa, mas por questões de espaço encontrámos uma solução diferente, que acabou por dar uma dinâmica interessante à inauguração.  A presença deles era importante, porque me fazia mesmo confusão que, logo no primeiro momento, não estivessem todos os artistas envolvidos e Elvas era mesmo um momento-chave, era a entrada na exposição — e ainda mais especial porque foi a Ana Cristina Cachola quem lançou este desafio todo, que me deu o livro Diante do Tempo e me disse para o ler. Pensámos em vários espaços e acabámos por escolher a cisterna, que conheço bem e que tem uma ligação forte à estética dos Osso Exótico. O que se apresentou ali foi uma performance única, que nunca mais se vai ver exactamente da mesma forma. E isso, para mim, torna o momento ainda mais especial. Foi um momento completamente irrepetível, quase como se estivéssemos a assistir a um ensaio do que será a versão completa — se é que alguma vez haverá uma versão final, porque com eles nunca se sabe. Mas essa é precisamente a beleza do nosso trabalho: essa imprevisibilidade boa. E esse espírito está muito presente também nesta exposição.

MIA: Relativamente ao conceito da exposição Diante do Tempo — exposição que reúne obras de 12 artistas e colectivos e que propõe uma reflexão sobre a passagem de tempo na arte, sobre património, política e temporalidade na matéria — podes nos falar um pouco sobre o conceito curatorial? Como foi a selecção dos artistas?

VA: A exposição procura transportar um pouco do espírito da Appleton para aquele lugar. Desde o início, ficou decidido que cada sala teria um artista — uma estrutura que nos é muito familiar: exposições individuais dentro de um coletivo. Quis sublinhar essa lógica convidando autores a escrever sobre cada artista de forma autónoma, o que reforçou ainda mais essa ideia de independência dentro de um todo. Foi essa a base curatorial. Depois, claro, houve um lado mais intuitivo, até afetivo, mas sempre com uma racionalidade por trás. Foi como fechar os olhos e lembrar-me de coisas que me marcaram. E claro, se eu ficasse com os olhos fechados por mais tempo, iam surgir mais e mais nomes, mais artistas — se pudesse, teria convidado muitos mais. Há muitos artistas com quem gostaria de ter trabalhado nesta ocasião, mas impus-me limites. Quis diversidade — de práticas, de gerações, de género. Embora a seleção tenha nascido de uma intuição pessoal, existe um equilíbrio claro nos meios representados: som, pintura, instalação, performance, vídeo, quase cinema ou cinema mesmo. O trabalho do Michael Biberstein, por exemplo, é pintura, sim, mas transcende largamente essa categoria — há uma dimensão quase espiritual no seu trabalho que é absolutamente única. A Joana Villaverde, por outro lado, traz uma mensagem política fortíssima, que corresponde ao momento em que ela está agora, e que tem a ver com a Palestina. A Susana Mendes Silva através de uma obra sonora faz-nos a provocação final. No fundo, não houve um critério fixo ou temático — foi uma escolha feita de muitas variáveis: afectos, admiração profissional… há tantas variáveis, tantas emoções misturadas com a razão… E pronto, esta foi a escolha.

Ao pensar o projecto curatorial, lembrei-me também do Appleton Recess. Há algo de continuidade aqui, mas também de ruptura — no sentido de abrir espaço a outras vozes e formas de pensar. Foi assim que surgiu o convite ao Bruno Marchand e à Ana Anacleto para desenharem a exposição. A escolha deles — três gerações de artistas que se cruzam — trouxe algo inesperado. Descobri, por exemplo, a Sara Graça, que não conhecia. E as ligações que criaram, como com a Hatherly ou o Pedro Diniz Reis, funcionaram muito bem. Trouxeram um olhar outro — e isso era fundamental. Não podia ser só eu, não podíamos ser apenas nós, Appleton — era preciso um elemento externo.

MIA: Na inauguração, falaste sobre colaborações. A Diante do Tempo é organizada em parceria com várias instituições, como o Museu de Arte Contemporânea de Elvas, o Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco, o Centro de Artes Visuais em Coimbra e a Córtex Frontal em Arraiolos. Como surgiram essas colaborações e qual a importância de um trabalho em conjunto?

VA: Acho que este tipo de colaborações fundamental. É essencial apostar em novos centros, por mais difícil que isso possa ser. Não se trata apenas de descentralizar, mas sim de garantir que existem novos locais onde a arte seja exibida, onde as pessoas possam ter acesso à cultura e à arte contemporânea. A Rede Portuguesa de Arte Contemporânea (RPAC) é muito interessante nesse sentido. Ela reúne espaços muito diversos entre si que permitem acolher exposições. Sabíamos que não poderiam ser espaços pequenos. Precisávamos de algo que conseguisse comportar quase tudo. Então, um dos critérios para escolher os lugares foi a espacialidade dos mesmos, mas também as relações que já tinham sido criadas ao longo dos anos. O Córtex Frontal é um exemplo disso, então fazia sentido que estivéssemos juntos. É importante também referir que, por trás de todo o trabalho de colaborações entre instituições, está o trabalho de várias equipas que se tornam fundamentais para o sucesso de cada etapa em cada espaço. Quando falamos das dificuldades enfrentadas, como a montagem das peças mais complexas e as questões técnicas que surgem, é preciso reconhecer a dedicação e o empenho de todos. A Ocean Cargo, por exemplo, não foi apenas uma transportadora. Eles tornaram-se verdadeiros parceiros na execução do projecto, trouxeram soluções para os problemas que surgiam, ao lado de profissionais como o Pedro Palma, que desempenhou um papel fundamental na gestão do cronograma apertado. Além disso, o trabalho técnico audiovisual, do João Chaves da Balaclava Noir, foi imprescindível para garantir que as peças fossem montadas com sucesso. Sem a união de todas as pessoas envolvidas, nada disto seria possível. Portanto, é fundamental reconhecer e valorizar o esforço colectivo que garante que um projecto como este se concretize com sucesso.

MIA: É importante garantir que mais financiamentos surjam para que se possa continuar a realizar estes momentos culturais com a qualidade e relevância necessária?

Sim, importa ressaltar a necessidade de garantir que não sejam apenas palavras, mas acções concretas, para que momentos assim possam continuar a ser realizados. Mas, mesmo com mais financiamento, há um problema que, recentemente, tem ficado muito evidente. Quando estamos a montar uma exposição, de repente damo-nos conta de que, por trás de tudo isso, existem pessoas com uma enorme boa vontade, que realmente se entregam ao máximo, e sem essas pessoas, o trabalho simplesmente não aconteceria. No entanto, muitas vezes as condições técnicas e físicas desses espaços não são dignas. E isso é algo que me preocupa muito. Eu questiono o que é que essas pessoas recebem por tanto esforço. É precisa uma uniformização de qualidade. Precisamos garantir que os recursos humanos sejam qualificados, que os programadores artísticos desses lugares tenham a formação e o suporte adequados. Se queremos criar um circuito de arte contemporânea sólido, os espaços têm de ser mais independentes, precisam de ser emancipados, ter a autonomia necessária para tomar decisões e implementar os seus projetos sem interferências. Na minha opinião, deveria haver um encontro entre os espaços para discutir isso. Seria muito importante organizar uma discussão sobre o que pode ser melhorado, o que realmente precisa mudar, porque senão, como eu disse no meu discurso na inauguração, isso acaba por ser só um sonho. É fundamental que todos os envolvidos estejam alinhados, todos os envolvidos, desde os artistas até os técnicos e programadores, merecem as condições adequadas para que possam fazer o melhor trabalho possível. E isso é algo que deve ser discutido, para garantir que estamos todos a caminhar na mesma direcção.

MIA: Diante do tempo, será apresentada em várias cidades, como já falámos. Como é que a itinerância contribui para uma descentralização da oferta cultural? E, para além da itinerância, o que achas que é necessário para atrair mais público?

VA: Acredito que a mediação é essencial neste processo e deve ser uma aposta clara. A mediação de públicos precisa de acompanhar as exposições nos diferentes locais, com o objetivo de envolver as comunidades locais, mas também de atrair visitantes de outros pontos do país. É fundamental, também, mobilizar também pessoas de Lisboa para exposições fora dos grandes centros. Sabemos que muitas acabam por visitar na inauguração ou no último dia, mas o verdadeiro desafio é estimular o acesso contínuo a esses espaços mais afastados, transformando-os em novos centros de arte. E isso só é possível com um trabalho local consistente, enraizado na comunidade. Queremos que as exposições provoquem algo — que abram caminhos, suscitem emoções, mudem percepções. Que ajudem a ver a arte contemporânea de outra forma. O papel do programador é, no fundo, o de chegar a novos públicos. Como diz a Teresa Anacleto, que faz parte da equipa nuclear, o nosso desejo é que as pessoas “caiam no caldeirão” da arte contemporânea. A exposição não termina na inauguração. Esse é apenas um momento. O essencial acontece depois, quando a obra é vivida com tempo e atenção. A presença ou ausência de público altera a experiência. Por exemplo, obras em vídeo, como a do Albano, sofrem com a agitação típica da inauguração. Outras, como a da Sara Mealha, interagem bem com o movimento. Mas, no geral, há sempre algo que se perde quando não se vive a exposição na sua totalidade. Gostava de ver mais críticos, representantes institucionais e profissionais a visitar exposições em contextos descentralizados. Mas sei que é difícil — e é um trabalho exigente. Ainda assim, é um esforço que vale a pena.

MIA: Em relação ao futuro, depois destes 18 anos, o que é que se segue? Há alguma direcção clara que já saibas que queres seguir?

Sim. Neste momento, temos a programação fechada até 2026, graças ao apoio bienal que ganhámos. Essa programação foi pensada por mim e pela minha equipa — é sempre um trabalho conjunto — mas, durante esse processo, percebi que a Appleton precisava de um novo rumo. És a primeira pessoa a quem digo isto publicamente: estamos a escolher uma nova pessoa para assumir a direção artística a partir de 2027. Eu vou continuar ligada ao projeto, talvez como diretora-geral, mas mais afastada do dia-a-dia. São 18 anos de trabalho intenso, e sinto que é altura de passar o testemunho. A nova direção terá total autonomia durante quatro anos. Acho fascinante imaginar como outra pessoa vai olhar para o espaço e propor novos caminhos. Quero fazer uma pausa na prática e dedicar-me a estudar temas como o financiamento da cultura, a filantropia e modelos de gestão, perceber o que resulta lá fora, o que pode mudar em Portugal e que mudanças podem ser feitas, também por nós, agentes culturais. Talvez isso traga novos caminhos à própria Appleton no futuro… Já pensei, por exemplo, em criar um centro de programação ligado à formação, com workshops e outras dinâmicas paralelas. Não seria eu a programar, mas poderia criar as condições para trazer outras pessoas, renovar, abrir o espaço a outros olhares. A renovação é mesmo essencial. Tenho 49 anos, comecei isto aos 31, e sinto que agora é o momento certo para passar o testemunho. Vai ser interessante ver o que aí vem.

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