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Entrevista com Dave e Tony, autores da capa do mês
DATA
01 Abr 2025
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AUTOR
Mafalda Ruão
Londres, Berlim, Lisboa, e uma vida dividida a dois. Dave e Tony são dois campos de interesse, duas infâncias, num misto de técnicas e gostos que um dia se encontraram e desde então prosperam em unidade. Do passado preservam a criança que foram, hoje são a transformação da ferida e das marcas em veia artística, sem diretriz ilustrativa, narrativa clara, ou referências literais. O trabalho é punk, numa provocação propositada que reflete um imaginário que é deles e de todos nós. Já que também nós fomos uma vez pequenos ingénuos num mundo com tanto de sonho, quanto de perturbação.

Londres, Berlim, Lisboa, e uma vida dividida a dois. Dave e Tony são dois campos de interesse, duas infâncias, num misto de técnicas e gostos que um dia se encontraram e desde então prosperam em unidade. Do passado preservam a criança que foram, hoje são a transformação da ferida e das marcas em veia artística, sem diretriz ilustrativa, narrativa clara, ou referências literais. O trabalho é punk, numa provocação propositada que reflete um imaginário que é deles e de todos nós. Já que também nós fomos uma vez pequenos ingénuos num mundo com tanto de sonho, quanto de perturbação.

E se a origem dos tempos é sempre plástica, fruto de uma criatividade que nunca se prende totalmente ao real, as suas obras são faíscas de cor e ousadia espontânea e improvisada, que no final deixam vestígios de assombro, qual doce inquietação.

Notoriamente atraídos por brinquedos, pelas mercadorias falsas, pelo estranho e o desconcertante, Dave e Tony compõem espaços expositivos onde tudo coexiste: realidade ora tangível, ora artificialmente criada; pistas para outras possíveis liberdades, ou uma clareza oculta paradoxal. Na capa do mês de setembro da Umbigo, a dupla desvela como, para lá das camadas brilhantes, expressivas e policromáticas, habitam sentimentos íntimos de vergonha ou subversão, os quais irrompem pela arte – rebeldia – num caos que, se outrora ordenado, agora se destina (por bem) à transgressão.

Sei que vocês se mudaram recentemente de Berlim para Lisboa. Porquê Lisboa, e de que forma sentem que a cidade vos está a moldar e à vossa prática artística?

Chegámos aqui por pura coincidência e cá ficamos desde então. Para nós, Berlim havia chegado a uma conclusão lógica, e os longos e escuros invernos eram bastante difíceis de aguentar. Lisboa ajusta-se ao nosso modo de vida e às nossas personalidades, e a luz é excelente. Lisboa ajudou-nos a recuperar a confiança na nossa própria atividade, permitindo-nos focar no nosso trabalho a tempo inteiro.

Um olhar geral sobre a vossa produção mostra que, se por um lado, o trabalho do David é direcionado para uma certa pintura expressionista, algo brutal; as visões do Tony são, de certo modo, mais orientadas para o design. Onde se encontram os vossos interesses e pontos em comum?

“Dave e Tony” é uma visão conjunta. Trabalhamos juntos em tudo, desde a conceção até à criação final. Conhecemo-nos em Londres em 1995 e os nossos interesses coincidiram desde cedo. Após tanto tempo juntos, é difícil distinguir os pontos em comum. Obviamente, trabalhamos de forma autónoma consoante as nossas competências, mas, no final, a nossa visão é a mesma desde o início. O Dave pinta, o Tony não, mas a pintura não é o único meio utilizado pelo Dave. Sempre que o Dave faz alguma coisa, tem uma tendência brutal. O Tony passou de designer a artista graças à sua admiração pelo anti-fashion e DIY, béton brut, art brut, outsiders, arte naïve, Arte Povera, música pós-punk e industrial, bandas techno como os Brutalismus 3000. Tudo no nosso mundo é realçado pela brutalidade, de uma forma ou de outra. Na verdade, poderíamos considerar todo o nosso trabalho como brutal e, se necessário, grotesco e conflituoso.

Conseguem, portanto, afirmar que nunca fazem cedências entre vocês?

Por norma, costumamos antecipar os pensamentos um do outro. Discutimos e discordamos muitas vezes, mas conseguimos sempre o que queremos.

À medida que me debruço sobre os vossos projetos, mais me lembro do pensamento divergente e da liberdade de expressão das crianças. Que parte da vossa criança interior ainda preservam?

A verdade é que trabalhamos de forma espontânea, com um espírito livre, que flui naturalmente e sem linearidade. O nosso tema é invariavelmente sombrio, em geral realçado de alguma forma por acontecimentos ocorridos na infância. A infância é aquilo que nos moldou, o nosso único lugar antes de nos conhecermos, provavelmente o único lugar onde guardamos segredos um do outro.

No entanto, apesar de termos sido criados em continentes diferentes, temos origens semelhantes – jovens da classe trabalhadora, com estruturas familiares semelhantes, pais imigrantes que casaram com mulheres locais, homossexuais num ambiente conservador. As nossas semelhanças e diferenças vêm de todas estas coisas – a nossa luta de classes, a nossa luta homossexual, a vergonha, a nossa batalha com a nacionalidade e as questões de pertença. A nossa criança interior está omnipresente através da história do trauma, e ambos carregamos feridas/cicatrizes de criança interior. Em crianças, fomos de certa forma aprisionados pelos nossos ambientes, por isso a ideia de liberdade nasceu quando rompemos com os sistemas familiares e sociais, saindo de casa para encontrar lugares para nós próprios assim que possível.

Daí os brinquedos muitas vezes retratados nas vossas criações, e também o mote da recente exposição intitulada Witchcraft TV – Steve Made Us Hardcore. De facto, essas peças remetem para uma espécie de energia macabra ou, como referiste, um sentido grotesco. Considerando as vossas experiências, isto significa que olham para a infância através de cores escuras?

Os brinquedos são apenas parte do nosso mundo. Temos em comum o interesse em colecionar. Desde que nos conhecemos, temos colecionado muitas coisas. Com a idade, a nossa coleção aumentou – de brinquedos esquisitos a objetos, porcelanas, obras de arte, curiosidades, raridades, mas também descobrimos fisicamente coisas na rua, como a maioria dos nossos materiais, roupas, podes dizer o que quiseres e provavelmente já encontrámos essa coisa. A história de cada coisa é o que nos interessa, seja ela real ou imaginada. Já vivemos em muitos lugares e colecionámos essas histórias. Vivemos com todas as nossas coisas, numa espécie de caos controlado. O nosso trabalho justifica a nossa coleção. À medida que as coisas se dispersam, voltam ao caos. Que Deus nos livre quando morrermos. E o Dave queria sempre bonecas quando era miúdo, mas em vez disso recebia como presente o Action Man. O nosso trabalho torna-se uma forma grotesca daquilo que nunca tivemos em criança. Muitas vezes questionamos o significado da autenticidade e do falso.

Onde e como vocês se imaginam no futuro próximo? Há planos ou iniciativas futuras?

Planeamos outra apresentação em Lisboa antes do final do ano. Fiquem de olho neste espaço. Mas Lisboa continuará a ser a nossa casa, já nos vemos a envelhecer aqui. Achamos a cena artística lisboeta bastante centrada nos portugueses – até agora, justificadamente – mas esperamos que a cidade comece a acolher os seus artistas estrangeiros que se tornaram parte da sua estrutura dinâmica.

BIOGRAFIA
Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.
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