article
Na Appleton: uma neblina de fumo sob uma onda de calor
DATA
29 Jun 2023
PARTILHAR
AUTOR
Frederico Vicente
Dois lanços de escada desencontrados separam Haze, de Vera Mota, de Primos de João Penalva. A Appleton Associação Cultural caracteriza-se pela simultânea dualidade, entre o que está no rés-do-chão (SQUARE) e o que está abaixo, na cave (BOX).

Dois lanços de escada desencontrados separam Haze, de Vera Mota, de Primos de João Penalva. A Appleton Associação Cultural caracteriza-se pela simultânea dualidade, entre o que está no rés-do-chão (SQUARE) e o que está abaixo, na cave (BOX).

Gaston Bachelard (“La poétique de l’espace”, 1957) lembra-nos que o rés-do-chão é a praça do quotidiano e do pragmatismo da vida, como adiante veremos. Já a cave sugere-nos o espaço misterioso da morada, a escada que desce lentamente à luz da gambiarra e é lugar por excelência para a irracionalidade; exagerando medos e anseios. Não será também a cave o lugar para a experimentação?

Uma neblina de fumo

Haze de Vera Mota é uma experiência plena e sublime de compreensão dos Açores. A bruma que enche o subterrâneo da Appleton. A mesma neblina que envolve o arquipélago, e que na exposição assume o estado sólido, ou concreto da pedra: o basalto. E talvez seja mais correto referir-nos ao “estado” como a um processo entre a alquimia e a transmutação. A rocha vulcânica é o tema escolhido pela artista para integrar o ciclo Get Back, comemorativo dos 16 anos de existência da Appleton, mas é igualmente objeto de exploração, investigação científica e tecnológica – ou apenas a curiosidade pela física, química e estética das coisas.

O basalto, que se forma com o arrefecimento de lava fundida, é uma das pedras mais comuns na superfície terrestre. Caracteriza-se pela robustez, resistência e cor negro baço, mas a artista decompõe o mineral, adicionando novas linhas à sua taxonomia. Instala na sala um laboratório para transformação da matéria bruta numa imaterialidade que escapa ao tato. A metamorfose é confusa e inquietante. A pedra é desfiada em longos e sedosos fios. Não são crinas, nem exatamente cabelos, embora aparente a mesma suavidade. Os plintos metálicos (e não é um acaso o uso do ferro, tanto pelo brilho, como por fazer parte da composição do basalto), elevam as fibras, dando corpo a manequins estáticos, embora voláteis, sobre o plateau branco. Vera Mota deixa-nos perdidos no nevoeiro tenso entre o natural e a “artificialização” do natural, entre o indelével peso da rocha e os feixes de sombra capilares da fibra (de basalto). Subimos de volta os degraus, curiosos e mais conscientes da raridade das matérias. Sabemos agora que o basalto pode tomar outras formas, menos inertes.

Uma onda de calor

Primos de João Penalva, mantém a narrativa simples. Uma projeção, meia dúzia de cadeiras e som. A sala é escura, deve permanecer escura e em silêncio. Não é uma sala de cinema, mas a atmosfera aproxima-nos. De facto, a obra de João Penalva tem essa ligação firme com a narrativa cinematográfica, com os enquadramentos close-up e os crops, construindo diálogos. Guiões com falas imaginadas e estórias de pessoas reais, com quem nos cruzamos. Penalva movimenta-se confortável nessa promiscuidade entre o texto jornalístico e documental e o storyboard escrito, muitas vezes assumindo um diário íntimo.

Não podemos advertir para a não utilização de dispositivos móveis ou filmagens na sala, porque estaríamos a invalidar a seguinte projeção.

Primos, mostra-nos uma cena com dois rapazes deitados no chão. Aparentemente os jovens passam pelas brasas. Em segundo plano, uma ventoinha não acompanha os barulhos e vozes de fundo. A sensação térmica é de 40 graus, lá fora na cidade, não muito diferente da imagem, está abafado. Cedo percebemos que o frame não se vai movimentar, nem as pás helicoidais da ventoinha, nem os dois primos. A imagem é na verdade um memento que Penalva captou usando um smartphone comum (lê-se na folha de sala, texto de Carlos Vargas). O artista congelou uma longa narrativa sonora, algures num distante oriente, onde se ouvem estórias de pessoas comuns “em estrangeiro”. Aqueles rapazes estão realmente a dormir? Perguntamos a certa altura. E porquê no chão?

O chão da cena é cimento afagado, tal como o pavimento da Appleton. O chão é também o plano de Yasujirō Ozu, estável e alinhado ao centro. Já a cadeira onde nos sentamos, é a estrutura ocidental. Tudo isto nos envolve na cena, mas como voyeurs indiscretos, que estão de fora, são estranhos. Mantemos o papel de narrador espectador, na expectativa de entender a ação. Uma vez mais, Penalva deixa em aberto a ficção, como um jogo de preenchimento de palavras, mesclando a realidade e a ilusão, o leitor indiscreto e o espectador atento.

Haze de Vera Mota integra o ciclo de exposições Get Back com curadoria de Carolina Trigueiros, a segunda exposição da artista para ver na BOX até dia 5 de julho. Primos de João Penalva pode ser visitada até dia 15 de julho.

BIOGRAFIA
Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.
PUBLICIDADE
Anterior
article
Ragnar Kjartansson – não sofra mais no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova
29 Jun 2023
Ragnar Kjartansson – não sofra mais no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova
Por Mafalda Teixeira
Próximo
article
Jimmie Durham: duas exposições imperdíveis em Nápoles
03 Jul 2023
Jimmie Durham: duas exposições imperdíveis em Nápoles
Por Marta Jecu