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João Penalva em retrospectiva: a heteronomia de um artista singular
DATA
30 Out 2025
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AUTOR
Frederico Vicente
 João Penalva é um artista plural, e a sua primeira exposição individual na Galeria Francisco Fino apresenta-se como “uma retrospectiva de uma prática heterogénea”. Parece complexo, mas os oito trabalhos reunidos refletem essa diversidade. Segundo Penalva, uns são trabalhos recentes, outros são peças antigas, deixando ainda espaço para obras já vistas “(…) em Portugal há tanto tempo já que ninguém se lembra de os ver”.
A produção artística de Penalva distingue-se precisamente pela multiplicidade formal e conceptual. É uma prática claramente interdisciplinar, oscilando com naturalidade entre pintura, fotografia, filme e instalação, mas sempre ancorada numa investigação contínua sobre os mecanismos da narrativa. É precisamente a relação entre a imagem e o texto que serve como fio condutor desta retrospectiva (atrevemo-nos a dizer que é o denominador comum de uma longa produção).
Qualquer que seja o suporte do trabalho, são contadas histórias de outros, fazendo-os imaginar ainda histórias para outros. As peças de Penalva equilibram-se nesta treliça entre realidade, ficção e diálogo mudo com o espectador – aquele que assiste a um espetáculo e preenche as lacunas, imaginando-as. Penalva provoca-o intencionalmente, coreografando ausências e convidando o participante a entrar nessa dança a dois, deliberadamente participante, ou simplesmente como voyeur. Isso é evidente, por exemplo, na série de fotografias dedicada às Ikebanas do Mestre Nanyo (2007) e nos retratos de costas de Sumiko (2009).
De volta à galeria, a dança inicia-se com Nu Reclinado (Abstrato, 2025). Trata-se de uma revisita da série Blanket pictures (2016). A impressão de uma manta remendada, cujo título é tão complementar como fundamental, remete à Vénus de Urbino, de Ticiano, assim como às figuras de Amedeo Modigliani, ou a Eduardo Viana (e a tantas outras pinturas que fizeram a história do corpo nú na arte ). Mas o que sugere uma pintura no formato paisagem, pendurada na parede é, na verdade, uma impressão de uma manta kantha, aqui reproduzida e cuidadosamente emoldurada. Penalva, com humor, provoca ambiguidade.
Vizinha desta, encontramos uma composição desdobrada com dois sacos de papel japoneses do século XIX sobre veludo, acompanhados por uma legenda “informativa”. Uma vez mais Penalva recorre às palavras e ao texto como bengala comunicativa, integrando a função da “tabela” no discurso da exposição.
Na parede oposta estão Philharmonie, inspirado em Erich Fritz Reuter (1911–1997, 2025) e John Tanner 1892 (2025). A primeira é uma pintura do padrão em pedra, desenhado pelo escultor Erich Fritz Reuter para o pavimento do edifício da Filarmónica de Berlim. Revela-se o que está igualmente implícito na obra Shiroyama (2025) (presente na exposição) a obsessão de Penalva pelas composições anónimas dos pavimentos dos logradouros, pátios, ruas e cidades – lembramos a intervenção de Dimitris Pikionis na Acrópole de Atenas, embora esta seja marcada por uma assinatura indelével. Penalva persegue no caminhar, esse anonimato, olhando para baixo em busca de linhas de desejo, falhas e fendas, como na série de fotografias London Pavements (2014) ou para cima em Looking Up in Osaka (2006).[1] Na mesma parede, e próximo da série Sete vistas de espaços entre cinco cadeiras (2015) está John Tanner 1892 . O nome é a “identidade” do díptico formado por uma única porta: a frente e o seu verso. Mas quem foi John Tanner em 1892? Penalva questiona-se sobre o nome, escrito a lápis numa das faces da porta, do outro lado, vários caracteres gravados por anónimos sobre a madeira. Esta é uma prática ancestral, que explora a persistência da memória, usada tanto por canteiros medievais que marcavam pedras deixando símbolos próprios, como por outros artífices ou artistas. Na verdade, por todos nós, que já alguma vez escrevemos juras de amor em cascas de árvores ou folhas de cactos.
Ao fundo da grande nave industrial, que bem caracteriza estes armazéns de Marvila, uma sala pintada de vermelho. People On Air (2014), são dez imagens de desconhecidos com escritos sobre os sons que não se ouvem, em jeito de novela radiofónica. A instalação recorre a uma sequência de imagens adquiridas on-line. Escreve Penalva que quando as recebeu, no verso, em caligrafia fina, estavam as receitas de onomatopeias para sons reais.
Terminamos este texto do mesmo modo que em 2023, quando escrevemos sobre o filme Primos (2020) na Appleton Square: “Uma vez mais, Penalva deixa em aberto a ficção, como um jogo de preenchimento de palavras, mesclando a realidade e a ilusão, o leitor indiscreto e o espectador atento.”
[1] Este último é também um livro de fotografias de cabos e postes elétricos emaranhados sob céus vibrantes.

BIOGRAFIA
Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.
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