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O Jogo como Purga
DATA
24 Mar 2025
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AUTOR
Maria Inês Augusto
Vera Midões constrói um universo pictórico que se revela como um jogo sem aparentes regras pré-definidas — um xadrez fluido, que se expande, onde avanços e recuos são executados num equilíbrio instável, num caos aparente, entre estratégia programada e acaso. As coisas que se vão não voltam nunca, na Dialogue Gallery, manifesta-se como um rito de ocupação e reinvenção, onde corpo, gesto e pintura se fundem num ritual contínuo.

Cada gesto, cada escolha, pode ser visto como uma jogada que reverbera no fluxo do tempo.

Vera Midões constrói um universo pictórico que se revela como um jogo sem aparentes regras pré-definidas — um xadrez fluido, que se expande, onde avanços e recuos são executados num equilíbrio instável, num caos aparente, entre estratégia programada e acaso. As coisas que se vão não voltam nunca, na Dialogue Gallery, manifesta-se como um rito de ocupação e reinvenção, onde corpo, gesto e pintura se fundem num ritual contínuo.

Visitei a exposição com a Vera num destes dias de dilúvio. Assim que chegámos a conversa encaminhou-se, de forma espontânea e natural, para Labirintos de uma Quadrícula. Vestígios de um momento que aconteceu na inauguração encontram-se num espaço situado ao fundo da primeira sala, delimitado por uma grelha desenhada no chão, com um televisor que transmite imagens que documentam a mecânica de um jogo que havia acontecido ali. A artista rapidamente partilha que esta exposição partiu do desejo de revisitar e dar continuidade à performance que aconteceu em Madrid no ano passado. Trata-se de um momento partilhado, com duração variável, onde o gesto de demarcação do espaço que constrói um tabuleiro de jogo, o corpo da artista e os sons do saxofone de Rodrigo Amado e da guitarra de Luís Lopes tornam-se agentes de um mesmo campo sensível — táctil e sonoro. A relação entre os três artistas é orgânica, vibrante e assenta no improviso e impulso, como se o braço de Midões fosse a própria extensão do som. Há um contágio entre os corpos e a música que reclama o espaço, uma fusão que ressoa na própria fisicalidade da performance. As imagens exibidas no televisor amplificam a ideia de jogo, evidenciando a contínua transformação dos três agentes em cena. Como peões num tabuleiro, como peças de xadrez que avançam e recuam, reinventam o espaço, sendo, também, moldados por este.
Perante esta espécie de coreografia não ensaiada, Vera questionou os músicos quais seriam as regras do jogo. A resposta dos artistas foi simples: não queriam regras. Mas uma se impunha: não pisar as casas pretas acabadas de pintar, para, dentro do possível, manter intactas as casas brancas. Essa única restrição ressoa como metáfora, expondo a dialéctica entre liberdade e restrição, acaso e estrutura, criando um espaço dinâmico de possibilidades que ecoa, por um lado, a imprevisibilidade da vida, por outro as estratégias que adaptamos, os saltos de fé que damos e as amarras que sentimos.

Esta lógica de ocupação é passada para o plano bidimensional. As pinturas que pontuam esta primeira sala são territórios onde figuras ganham forma através da cor, camadas, recortes e colagens, fragmentando e reconstruindo narrativas que podem ser, ao mesmo tempo, individuais e coletivas. É sabido que no seu processo criativo a artista opera numa dialética entre a acumulação e a purga: recolhe experiências, sensações e imagens para, através da expressão, libertá-las. Assim como no free jazz de Labirintos de uma Quadrícula, onde o improviso guia a forma, Midões permite que a sua própria criação artística se leve ao limite sem nunca se esgotar, sem nunca se encerrar, instaurando um caos controlado, onde cada gesto pictórico é simultaneamente espontâneo e cirúrgico.

Viradas agora para o outro lado da sala, de frente para Alegoria (2025) e Reflexo (2025) a tensão criada pela disposição das obras na galeria é evidente. A dinâmica espacial é estratégica, relembrando, também, um tabuleiro de jogo tridimensional onde cada peça — cada tela — ocupa um lugar preciso, em diálogo com as restantes obras e connosco. As relações entre os trabalhos são articuladas pela proximidade e pela distância, pelo contraste entre tons luminosos e composições mais escuras, criando uma tensão de oposições e ressonâncias cuidadosamente orquestradas. É o confronto de cores e dimensões que causa um desconforto calculado, uma fricção visual que mantém o olhar inquieto, como que à procura de equilíbrio entre fragmentos de uma, ou mais, narrativas sem enredo fixo — um fluxo de possibilidades interpretativas. A sensação é que, ao percorrermos a exposição, estamos a movimentarmo-nos através desse tabuleiro de ambiguidades, onde é necessária — ou não — a descodificação de pistas visuais, uma imersão necessária na procura de pistas que revelam camadas ocultas. Cada obra funciona como uma casa onde o espectador deve deter-se, reflectir, aguardar o próximo movimento, como que à espera de uma ordem: Vá para a casa de partida, recue 3 casas. Mas, e ao contrário de um jogo de tabuleiro convencional, aqui não há regras pré-definidas — apenas a possibilidade infinita de leituras, onde a experiência de cada um dita os passos seguintes.

Para além da disposição das obras, também diferentes forças de investigação que estruturam as abordagens narrativas criam tensão. Nas obras em tons mais claros e com cores que se destacam, Midões esclarece que lhe interessa ‘a desconstrução das figuras e dos espaços’. Nestas pinturas onde habita o caos, mas não necessariamente desordem, parece existir uma reflexão sobre a complexidade das nossas próprias camadas identitárias. Em Alegoria (2025), por exemplo, onde está representada uma caverna, Vera abre brechas para que possamos vislumbrar as suas figuras fragmentadas.

Nas obras em tons mais escuros, por outro lado, a tensão não emerge da desconstrução radical da forma, mas sim da relação entre luz e sombra, onde tudo se desenrola em atmosferas próprias. Em Reflexo (2025), uma cabra encara a própria imagem, numa inquietação ontológica, questionando a própria existência; uma outra figura anseia pela luz, “pede e exige que entre na luz”[1], como se habitasse um limiar entre a revelação e o esquecimento. A construção de cada composição parece nascer e crescer através destas ordens que Midões recebe de qualquer coisa que se desenrola para além dela — “falta o homem da chave e o homem da chave volta… eu repito figuras em várias pinturas, mas que fazem coisas diferentes, têm outras formas de estar, outras expressões. Também a recorrência de formas e figuras na obra da artista inscreve-se numa lógica de reconfiguração contínua, relembrando que nada se fixa, mas que se transforma, reaparecendo sob novas expressões e significados, ideia para onde nos remete também o título, mas já lá iremos. Há na prática artística da Vera uma espécie de purga emocional e simbólica daquilo que vai experienciando — são sentimentos, lugares, pessoas, memórias que se tornam matéria pictórica. Cada composição ressoa como um espelho da impermanência e da contínua reconstrução do eu.

Noutra sala, detivemo-nos diante da Arena (2025) durante algum tempo — uma obra que, em justaposição a outra de diferentes dimensões, parece colossal e dá continuidade à tensão já sentida. As figuras que habitam esta composição dispõem-se como gladiadores de tempos e narrativas distintas, envolvidos em diferentes diálogos e confrontos. Há uma carga dramática subjacente à disposição das figuras, um jogo de forças, um embate simbólico entre diferentes ordens e temporalidades. Os elementos que pontuam a tela adensam a ideia de código, de pistas, de vestígios de um enigma cuja solução nos escapa. A presença de animais híbridos e antropomórficos, que aqui surgem fruto de um vasto trabalho de investigação e arquivo visual e iconográfico da artista, intensifica essa ambiguidade. As figuras, agentes expressivos que transportam em si traços humanos, manifestações de pulsões e emoções que reconhecemos como nossas, reflectem um território de inquietação e deslocamento.

Nesta mesma sala, Interrogatório (2025) destaca-se pela sua aparente contenção. Ao contrário da densidade visual de Arena, esta obra constrói-se pelo silêncio e pela suspensão. A cena é quase teatral: um polícia-enfermeiro, com o dedo pronto a punir, impõe a sua presença sobre um espaço saturado de suspense, onde uma figura parece sorrir ao saber o desfecho. Um telefone que não toca— ou que talvez toque sem que ninguém atenda — reforça a atmosfera de inquietação e impotência, um eco visual de relações de poder talvez. Refúgio do Invisível (2025) inscreve-se na lógica da mutabilidade e da transformação, temas que reverberam no próprio título da exposição. A obra parece explorar a ideia de refúgio como um espaço transitório, onde a invisibilidade pode ser tanto uma forma de protecção quanto de apagamento.

As coisas que se vão não voltam nunca convoca, também, a ideia de impermanência e de fluxo contínuo. Cada instante se desfaz irremediavelmente no próximo. Inspirada pelo poema Cata-Vento de Federico García Lorca, Vera Midões explora, nesta exposição, campos de mutação perpétua, de memórias em movimento — Eu sinto que as coisas que já lá vão não voltam a ser como antes. O nosso corpo é sempre um acrescento de coisas, em mutação, e não volta à forma. À forma mais naïf, infantil, de alguma forma autêntica. Estamos sempre a acumular coisas, espaços, tempos… faz-nos valorizar o que está para trás. O seu trabalho, nesse sentido, estrutura-se como uma arqueologia do efémero, onde a acumulação de experiências se traduz numa linguagem visual densamente estratificada. O uso de colagem, a sobreposição de camadas e a coexistência de elementos fragmentados sublinham essa dialéctica entre o que se perde e o que persiste sob novas formas.

Falámos como mantém um diálogo íntimo com a poesia, não apenas como referência, mas como um princípio estruturante da sua própria construção visual e de pensamento. Falámos sobre Surrealismo. Falámos sobre o excesso de informação, momento em que a Vera acrescenta “como nas minhas obras… Ou há uma empatia com as minhas telas e por isso demora-se nelas, analisa-se… ou há coisas que se perdem. As minhas obras têm muita coisa a acontecer, é difícil assimilar tudo no primeiro momento.” A verdade é que a densidade de signos nestes jogos criados por Midões desafia o olhar apressado e exige um envolvimento demorado. Na fase final da visita, Vera solta uma ideia que ficou comigo: Interessa-me a ideia de não perdermos efectivamente coisas que achamos que perdemos”.

Talvez, se nos demorarmos tempo suficiente, nada se perca. Talvez tudo se transforme ou permaneça oculto, à espera de ser expurgado para depois reaparecer com novas expressões, novas formas, em novos enredos – como as figuras da Vera. As coisas que se vão não voltam nunca é um jogo de ressurgimento e metamorfose e pode ser visitado até 29 de março de 2025.

[1] Vera Midões a propósito da obra.

BIOGRAFIA
Maria Inês Augusto, 34 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) na área dos Serviços Educativos como estagiária e trabalhou, durante 9 anos, no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada durante várias edições e colaborou, em 2023 com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. Desenvolve, actualmente, um projecto de Art Advisory e curadoria, colabora com o Teatro do Vestido em assistência de produção e tem vindo a produzir diferentes tipos de texto.
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