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A Identidade como colaboração: ecos marginais na obra de Susan Hiller
DATA
11 Jun 2025
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AUTOR
Maria Inês Augusto
"Tudo aquilo que chama a minha atenção pode ser o ponto de partida para uma obra, e o meu comprometimento com as coisas e ideias remanescentes, rejeitadas e esquecidas que criamos colectivamente pode, e tem sido, lido metaforicamente, como um comprometimento em dar visibilidade a outros marginalizados social e politicamente." — Susan Hiller [1]
A exposição que a Culturgest dedica agora a Susan Hiller constitui não apenas uma retrospectiva do seu percurso, mas um verdadeiro mergulho nas camadas mais profundas da consciência colectiva, nos seus fantasmas e nos resíduos do seu imaginário. A artista, com uma prática experimental que atravessa pintura, fotografia, instalação audiovisual e escrita, sempre habitou entre o visível e o invisível, entre a documentação, a superstição e o sonho.
Moldada por uma confluência de influências que abrangem o rigor formal do Minimalismo, a experimentação performativa do Fluxus, as investigações do inconsciente promovidas pelo Surrealismo, e uma perspectiva feminista crítica, Susan Hiller interessou-se desde cedo por práticas alternativas e marginais. A percepção extrasensorial, o subconsciente e a escrita automática tornaram-se, ao longo do tempo, instrumentos de sondagem das zonas mais profundas e na sombra da cultura contemporânea. A sua obra configura-se como uma investigação persistente do inconsciente colectivo — uma arqueologia do esquecido, uma pesquisa partilhada que transforma a ‘exclusão’ em matéria crítica e poética.
O seu posicionamento artístico reflecte uma recusa deliberada de narrativas hegemónicas e convenções estéticas dominantes. A formação inicial em Antropologia moldou não só a sua forma de ver, como lhe ofereceu metodologias de pesquisa e despertou um interesse por práticas não legitimadas, mais tarde reelaboradas numa linguagem própria. O seu trabalho desenvolve-se como uma etnografia do inconsciente colectivo, onde o esotérico, o doméstico e o tecnológico se contaminam numa investigação persistente, que não cede a um fascínio ingénuo pelo místico e que mantém rigor conceptual, tornando-a numa das vozes mais singulares e, diria, pela sua singularidade, incómodas, do panorama da arte contemporânea.
Na Dedicado ao Desconhecido, primeira exposição individual da artista desde a sua morte em 2019, as obras organizam-se em núcleos temáticos que percorrem os vários momentos e interesses da artista, oferecendo uma visão abrangente sobre a sua incansável investigação.
Na primeira sala, encontram-se obras das séries Dedicated to the Unknown Artists e Rough Seas. A partir de 1969, Susan Hiller começou a coleccionar postais antigos que representavam mares revoltos ao longo da costa britânica — imagens populares, por vezes retocadas manualmente, que foram originalmente produzidas em massa, mas que aqui são reenquadradas com o rigor de uma curadoria atenta. Organizadas em grandes formatos, estas composições — como Storm Scenes (1989), Rough Dawns II (2015) ou The Blues (1984) — revelam uma poética, onde a repetição e a variação criam um ritmo visual próprio. Em obras como Dedicated to the Unknown Artists: Addenda I, Section 6: A Cornish Seascape (1976), Hiller acompanha os postais com mapas e tabelas técnicas, reivindicando-os como testemunhos culturais e atribui valor estético e documental. Resgata-os do anonimato e interroga a autoria, a memória. São imagens que, recontextualizadas, desafiam as hierarquias do olhar e devolvem ao banal a sua dimensão simbólica e afectiva.
Na década de 1970, a artista desenvolve uma série de Investigações Colectivas — experiências participativas que convocam pequenos grupos para explorar sonhos, auras e fenómenos telepáticos. Neste segundo núcleo da exposição, obras como Documentation of “Draw Together” (1972), What I See (the Aura Series) Studies in the Visible World, Part 1 (1975) ou Dream Mapping (1974) revelam uma metodologia quase científica, ainda que profundamente subjectiva, que desafia as convenções da observação, que inverte as hierarquias epistemológicas vigentes. Hiller interessa-se por explorar os limites do que consideramos conhecimento ‘legítimo’ ao cartografar sonhos partilhados ou traçar os contornos energéticos do corpo humano, reconhecendo a intuição o invisível e o simbólico como vias válidas de investigação e expondo, de alguma forma, as lacunas e exclusões inerentes aos paradigmas racionais dominantes.
Durante a realização de Draw Together, Susan Hiller vive uma experiência espontânea de automatismo que se revela transformadora e que a leva a desenvolver uma linha de trabalho em que a escrita automática se torna uma prática central. A mão, liberta da vontade consciente, começa a mover-se sozinha, desenhando sinais híbridos entre ‘hieróglifos indecifráveis que se transformavam em palavras legíveis, com vários trocadilhos’[1]. Ao ceder ao fluxo do inconsciente, Hiller desafia a hegemonia da razão discursiva e expõe a multiplicidade do eu — sugerindo que a identidade é, em última instância, uma construção coletiva, plural e instável: a identidade é uma colaboração, que o eu é múltiplo[2].
Nos seus manuscritos automáticos — alguns posteriormente transformados em esculturas ou instalações —, a artista inclui frequentemente comentários metalinguísticos que interrogam a linearidade da linguagem e a ideia de um sujeito unificado. Esta prática abre caminho a uma exploração profunda das margens da consciência, da linguagem e do ser. Inspirando-se nas práticas espiritualistas do século XIX, no automatismo surrealista de autores como André Breton ou Robert Desnos[3], e nas propostas freudianas da associação livre[4], Hiller apropria-se da escrita automática como ferramenta crítica. Não se trata de reproduzir passivamente essas tradições, mas sim de as reinscrever como gesto e forma de resistência e revelação: aceder ao que permanece invisível, recalcado ou excluído pela normatividade racional moderna. Neste gesto há também uma dimensão política e estética: ao dar corpo a linguagens, de alguma forma, silenciadas ou até marginalizadas, a artista reivindica outras histórias da arte, da literatura, onde o esotérico e o intuitivo não são descartados, mas reconhecidos como fontes legítimas de conhecimento e criação. Obras como a sua homenagem escultórica a Gertrude Stein, presente na exposição, revelam esse esforço de reabilitação simbólica — uma tentativa de reinscrever figuras e práticas esquecidas no presente.
Durante a década de 1980, o interesse de Susan Hiller pelo automatismo adquire novas formas. A escrita automática evolui para uma expressão mais caligráfica e abstracta, fundindo-se com o desenho e a pintura, numa linguagem visual que intensifica a carga simbólica do gesto. Em séries como Home Truths, a artista sobrepõe caligrafias automáticas a padrões de papel de parede infantil, expondo as ideologias e os estereótipos de género que se ocultam sob superfícies aparentemente inocentes — ex.: Ghostbusters (1986). Já em The Secrets of Sunset Beach (1987), fragmentos de escrita emergem sobre imagens de espaços quotidianos, criando uma tensão entre a esfera íntima e os códigos culturais que moldam a subjectividade. Ao mesmo tempo, Hiller inicia um ritual anual: a queima das suas próprias pinturas, cujas cinzas conserva em recipientes de vidro — Next (1986). Este gesto performativo (e silencioso) adquire um carácter simbólico, funcionando como um comentário/reflexão sobre a transitoriedade da arte, da memória e da identidade. É uma prática que recusa a fixação do objeto artístico e enfatiza, em vez disso, o processo, o desaparecimento e a transformação — temas centrais na sua obra, que questionam a própria natureza do que é preservado, lembrado ou esquecido.
Ao longo do corredor que conduz à instalação Belshazzar’s Feast — a que voltaremos — encontra-se From India to the Planet Mars (1997–2017), uma obra composta por caixas de luz e transparências fotográficas que condensa vários dos eixos de investigação centrais na prática de Susan. Aqui reúne excertos de textos escritos por médiuns, artistas, poetas e figuras anónimas, incluindo mensagens mediúnicas, relatos e documentos com origem na psicanálise. O título faz referência ao estudo do psicólogo Théodore Flournoy sobre Hélène Smith, uma médium suíça que afirmava comunicar com inteligências de outros paletas, entre outras experiências. Já em Belshazzar’s Feast (1983–84), instalação que se destaca, Hiller parte de ‘relatos jornalísticos de telespectadores assombrados por estranhas aparições’[5] televisivas ocorridas quando a emissão terminava durante a noite. A instalação multimédia combina imagens filmadas a Super 8 de uma fogueira com gravações sonoras da própria artista, cantos e narrações, transformando o ecrã televisivo numa lareira — lugar de partilha e projecção simbólica. Sem afirmar nem negar a veracidade dos relatos, Hiller trata estas experiências como factos sociais, reveladores da persistência do mágico na modernidade tecnológica.
Noutra sala, Psi Girls (1999), obra multicanal composta por cinco projecções sincronizadas com excertos de filmes populares — The Fury (1978), Stalker (1979), Firestarter (1984), The Craft (1996) e Matilda (1996) — nos quais jovens raparigas manifestam poderes telecinéticos. Acompanhadas pela sincronização crescente e progessiva de um coro gospel, é criada uma atmosfera hipnótica que reflecte sobre o fascínio cultural pelo paranormal — e, talez, sobre o potencial subversivo do poder feminino —, deixando o espectador num espaço de suspensão inquietante, entre crença e descrença.
No final de percorrermos a exposição curada por Andrew Price, o sentimento é de que percorremos também a vontade de Susan Hiller de desafiar continuamente as fronteiras entre o racional e o irracional, entre a cultura ‘oficial’ e os seus subterrâneos simbólicos.
No núcleo Levitações, GHOSTS e Auras, reúnem-se imagens digitais de levitações amadoras, vapores fantasmagóricos e campos energéticos coloridos — como Homage to Yves Klein: Levitation (Man) (2011), Vapours (Brown) (2012) ou After Duchamp (2016–2017). Ao inspirar-se em figuras modernistas como Yves Klein e Marcel Duchamp, Hiller investiga como o oculto e o misticismo se infiltram e persistem na cultura visual contemporânea. Para a artista, estas imagens não são prova do sobrenatural, mas metáforas do desejo humano de transcendência, do impulso constante para ultrapassar os limites do corpo e da realidade objectiva.
Ao terminar o percurso da exposição curada por Andrew Price, permanece a impressão de termos atravessado também o território simbólico que Hiller habitou. Com uma profunda sensibilidade poética e conceptual, faz-nos ver que os resíduos culturais, os fragmentos esquecidos, o banal, os sonhos e as crenças "irracionais" são material vivo, estético e sublime.
A exposição, organizada pelo Museo Helga de Alvear, Cáceres, em colaboração com a Culturgest, pode ser visitada até dia 22 de Junho de 2025.

[1]Texto informativo na exposição
[3] CONLEY, Katharine, Surrealist Ghostliness-University of Nebraska Press (2013), Susan Hiller’s Freudian Ghosts, pág. 201
[5]Texto informativo na exposição
BIOGRAFIA
Maria Inês Augusto, 34 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) na área dos Serviços Educativos como estagiária e trabalhou, durante 9 anos, no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada durante várias edições e colaborou, em 2023 com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. Desenvolve, actualmente, um projecto de Art Advisory e curadoria, colabora com o Teatro do Vestido em assistência de produção e tem vindo a produzir diferentes tipos de texto.
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