Entre pessoas queridas, fala-se de quão bom seria morarmos no mesmo prédio para podermos, sem grande esforço ou agenda, tomar uma bebida a uma hora atípica. Se eu morasse no mesmo prédio que os meus amigos, deixar-lhes-ia mensagens debaixo da porta, traria morangos a mais do mercado para depois distribuir por cada apartamento. Até imagino um sofazinho no hall de entrada, debaixo das caixas do correio, fotografias nas escadas e rebuçados de mentol numa taça com rebordo prateado. Post-its e mais post-its com frases curtas, funny, motivacionais, românticas, para a segunda-feira, para a sexta-feira e para o Domingo, os dias da semana que merecem mensagens especiais.
Experimental: Ups and Downs é uma exposição de Débora Mergulhão Bastos instalada nos espaços comuns do prédio onde vive, em Lisboa. Quando cheguei à Rua Maria Pia, adivinhei logo qual era o prédio, como se também o edifício de betão, pintado de cor-de-rosa, se fizesse feliz e pomposo pelo evento que recebia, e isso se lhe acentuasse uma aura de alegre acontecimento, a que ninguém fica indiferente. O Prédio sente-se visto pelo desejo e isso fá-lo brilhar um pouco mais do que qualquer outro daquela rua enorme. No momento em que soube que Débora estava a pensar uma exposição para a escadaria e hall do seu prédio, dispararam algumas imagens mentais, relações com projetos como o Chambres d’Amis, de Jan Hoet, em 1986, que instalou 51 obras de arte em 58 casas privadas em Ghent, na Bélgica, ou The Kitchen, a primeira exposição de Hans-Ulrich Obrist, na cozinha do seu apartamento na Suíça, em 1991. Tratam-se de propostas expositivas em que a solução ao constrangimento oferece a própria forma da exposição - uma cozinha, um quarto, uma garagem ou, neste caso, o condomínio de um edifício habitacional. Se, por um lado, faço associações lógicas com pares internacionais, de toda a vida, mas, ainda assim, interlocutores de uma história da arte contemporânea, por outro lado, sei que Débora e as suas pinturas fazem-se acompanhar de alegorias mais próximas, que nos chegam do íntimo do quotidiano, e não necessariamente do seio arquivístico.
O título anuncia, tão jocosa como honestamente, um período experimental de Pintura, com tudo aquilo a que tem direito, incluindo os seus altos e baixos. Cristalizam-se nestas pinturas sensações que nos temos esforçado para resolver: há ansiedade, há medo, há obsessão. Mas também nos salvam com a informação de que senti-las é a forma de vir a conceber amor explosivo, indisciplinado, e hipóteses de futuro abundante. Apesar de acreditarmos nesta relação de causa efeito, esta lógica continua a sentir-se meritocrata, porque parte de um fundamento moralista: o de que se é merecedor do bem depois de se provar o esforço do combate ao mal. Talvez a resposta possível seja uma autodeterminação colectiva que radicalmente expõe e incorpora o que envergonha, magoa e suprime - os buracos súbitos no alcatrão, as infestações e o bolor nas paredes - sem esperar nada em troca. E que, a seu tempo, estabiliza, e nos enche a cara de beijos. Os beijos dos anjos. É que os anjos estão sempre doidos para nos beijar, sempre com vontade de nos encherem a cara de beijos. Que bons, os beijos dos anjos.
Na Almirante Reis, uma das avenidas da cidade, pode-se ler na porta de um hotel recente:
- Deseja o Futuro.
Ao que eu respondo:
- Que o Desejo nos observe.
Se o Desejo nos observar com atenção, se o Desejo puder acompanhar as nossas movimentações, os gestos diários repetidos, os altos e baixos, o continuar, se o Desejo nos puder ver a continuar, então, se assim for, o Futuro será desejado. Criar imagens é expor o que se reproduz sob a luz do Desejo, um lugar de responsabilidade na construção de espaços de privilégio e poder na distribuição do capital sensível. A pintura sacraliza essa sensação, e quem a recebe usufrui do compromisso do seu espírito e da pessoa que a pintou. O quotidiano é desejado quando a sua constância é colocada em causa. Basta uma brisa quente para pensarmos na leveza dos encontros no hall de entrada, no prédio dos amigos, às quatro da tarde, como quando era verão e esse era o ponto de encontro para começar a vida.
A exposição Experimental: Ups and Downs está aberta de 27 de junho a 29 de junho.