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Pedra que pariu, de Rita Senra
DATA
27 Fev 2025
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AUTOR
Débora Valeixo Rana
Se, nas pedras parideiras, os nódulos biotíticos se soltam da matriz granítica, no trabalho de Senra, a palavra liberta-se do seu enunciador e transforma-se num corpo independente. Ainda assim, este desprendimento não ocorre sem marcas. Tanto na pedra como no discurso, há vestígios do que se encontra, agora, ausente.

Pedra, Papel, Tesoura, enquanto jogo tradicional e recreativo, institui um sistema cíclico de forças em constante alternância. Num frente a frente, elementos díspares entram em confronto, expondo o seu domínio e vulnerabilidade: enquanto a pedra vence a tesoura, pois quebra a tesoura, o papel é vencido por esta, que o corta. Por sua vez, a pedra é derrotada pelo papel, que a envolve e subjuga. A instabilidade inerente a esta estrutura dialética, na qual cada elemento se inscreve simultaneamente como potência e fragilidade, ecoa na obra de Rita Senra, Pedra que Pariu, atualmente em exibição no Sismógrafo.

O ímpeto do trabalho de Senra encontra-se no fenómeno nacional das pedras parideiras, que revestido de palavras se impõe como um poema de grande escala. A pedra que pare pedra não é apenas um elemento mineral fixo, mas um sistema em transformação, marcado pela ação do tempo. Esta é constituída por um granito, único em Portugal e raro no mundo, que apresenta numerosos nódulos biotíticos com a forma de discos. Num processo de contração e dilatação, os nódulos de biotite, em resultado das variações térmicas e dos processos de erosão, soltam-se da pedra mãe e tornam-se unidades singulares. Se, nas pedras parideiras, os nódulos biotíticos se soltam da matriz granítica, no trabalho de Senra, a palavra liberta-se do seu enunciador e transforma-se num corpo independente. Ainda assim, este desprendimento não ocorre sem marcas. Tanto na pedra como no discurso, há vestígios do que se encontra, agora, ausente.

Cada letra, meticulosamente cortada à mão, carrega em si a possibilidade da ausência, pois o corte manual implica um risco inerente de perda. Neste processo de tentativa e erro, o texto constrói-se como um tecido de marcas onde a inscrição e a lacuna coexistem, reforçando a relação entre presença e ausência, resistência e fragilidade. Ainda que a palavra atue como um dispositivo de preservação, conservando-se a si mesma no ato de enunciação, a sua permanência está sempre condicionada à materialidade do suporte. Neste caso em específico, a escolha recai sobre o papel, um material que, apesar de leve e vulnerável, assume a função paradoxal de conter e suportar o discurso, reiterando a debilidade própria do ato de escrever e nomear.

A palavra, por sua vez, abstrai do grande plano o processo minucioso a que cada folha de papel é submetida, deslocando a materialidade do gesto para a dimensão do discurso. Senra, num processo moroso e de extrema minúcia, corta manualmente as folhas de papel, que individualmente mergulha em cera de abelha a uma temperatura previamente testada. Depois de secas, as folhas são cosidas, uma a uma, na máquina de costura. O ato de coser o papel inscreve-lhe um paradoxo: a linha que une também perfura, marca, fere, desvelando ou acentuando a sua efemeridade. Contudo, aquilo que nos parece, à primeira vista, como precário revela-se como o próprio dispositivo de resistência da palavra. Tratar-se-á da Vida tornada visível, sensível? (Deleuze, 2011, p. 121) Ou, ainda, da circulação da própria vida?

Tal como um jogo só se joga mediante o cumprimento das suas regras, a força deste poema é garantida pelas forças verticais e horizontais que o intercetam. Não se trata de ver quem vence, mas de evidenciar o equilíbrio dinâmico deste enlace, no qual cada elemento fixa a sua função mediante a presença do outro. O papel torna-se o umbigo da palavra, enquanto esta opera, à maneira de Deleuze, por variação, expansão, captação a partir de vínculos localizáveis entre pontos e posições. Num discurso que alterna, em cadência rápida, a enunciação pessoal e apessoal, mediante um jogo complexo de pronomes e verbos descritivos cujo ritmo se organiza a partir de uma estrutura repetitiva – “pedras que” –, estabelece-se um pacto da fala: o outro, narrador, já não é exterior, uma substância fechada, mas uma zona de passagem de rememoração. As pedras que insultam, distraem, pesam ou esmagam são também aquelas que curam e abraçam.

O que as pedras são, o que podem e o que fazem tanto vale na primeira pessoa do singular como do plural e é neste fluxo e relação que empreendemos a tarefa de procurar o contraste, entre a sombra e a cor, que nos permita compor o poema. A intermitência entre leitura e ilegibilidade impõem ao olhar um esforço contínuo de ajuste e de procura pelo ângulo certo. À medida que avançamos, algumas palavras surgem e revelam a frase a que pertencem enquanto outras se dissipam, gerando assim um estado de rutura iminente entre captação e perda. Talvez a ideia seja mesmo essa – a impossibilidade de recuperar plenamente um espaço de origem, bem como, e recuando ao título da obra, a frustração de um retorno impossível ao conforto de um útero. Entramos, então, num combate perante a volatilidade da palavra, confrontando-nos com a sua resistência à fixação e à permanência. Um verdadeiro atletismo afetivo, onde a palavra, leitura e a memória operam num regime de esforço, tensão e deslocamento contínuo.

Pedra que pariu, de Rita Senra, está patente no Sismógrafo, no Porto, até 22 de março.

 

 

Bibliografia:

Barthes, R. (2004). O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes Editora.

Deleuze, G. (2011). Francis Bacon Lógica da Sensação. Lisboa: Orfeu Negro

BIOGRAFIA
Débora Valeixo Rana (n. 1990, Lisboa, Portugal) é professora de Filosofia e reside no Porto. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2011) e é mestre em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário (2019). O seu percurso académico e profissional reflete um profundo interesse pela interseção entre Arte e Filosofia, um diálogo que a levou, em 2022, a ingressar no mestrado em Estudos Artísticos e Crítica de Arte na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
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