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Na Fragilidade do que persiste
DATA
26 Fev 2025
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AUTOR
Maria Inês Mendes
A exposição Na Fragilidade do que persiste, que reúne obras de Eduardo Freitas, Jéssica Burrinha e Mariana Maia Rocha, parece-me um destes encontros inesperados que principiam um encadeamento torrencial de contiguidades. Os três jovens artistas, até então desconhecidos entre si, encontram na Galeria Municipal Jovem de Vila Franca de Xira o radical-comum da sua prática: um infindável desejo de recuperar a memória e de encurralar o presente, tão frágil e, ao mesmo tempo, tão persistente.

Há um qualquer fascínio no ato de desbravar afinidades com um desconhecido. Umas vezes, desvendam-se interesses semelhantes, descobrem-se amigos em comum. Outras – aconteceu-me já por mais de uma vez –, encontram-se, longe de casa, vizinhos com quem nunca nos havíamos cruzado. A exposição Na Fragilidade do que persiste, que reúne obras de Eduardo Freitas, Jéssica Burrinha e Mariana Maia Rocha, parece-me um destes encontros inesperados que principiam um encadeamento torrencial de contiguidades. Os três jovens artistas, até então desconhecidos entre si, encontram na Galeria Municipal Jovem de Vila Franca de Xira o radical-comum da sua prática: um infindável desejo de recuperar a memória e de encurralar o presente, tão frágil e, ao mesmo tempo, tão persistente.

As obras presentes nesta exposição contam-se pelos dedos da mão e, no entanto, a relação estreita que estabelecem com o espaço convida-nos a uma contemplação demorada. Disposta ao longo da galeria, jaz Um caminho que percorro (2024), uma peça de Mariana Maia Rocha que, embora tenha já sido apresentada, adquire aqui a sua configuração expositiva ideal. A horizontalidade do espaço da galeria e a suspensão parcial da peça permitem não apenas evidenciar a sua extensão, mas também as texturas e as marcas do tempo transferidas para o látex através de um processo de frottage. Como uma pele largada por um animal de muda, Um caminho que percorro é um decalque do pavimento do quintal da sua avó, uma reflexão sobre os caminhos que percorremos e que, invariavelmente, marcam o nosso crescimento. O mesmo há que dizer sobre Como se o Muro respirasse (2023), uma transferência da superfície de uma parede de sua casa. Estas peças, vestígios quase arqueológicos da sua infância, são um mapeamento sensível de um tempo que já não lhe pertence: ora porque nunca foi seu, ora porque – entre mudas de pele – o deixou de ser.

A memória ocupa igualmente um lugar central na prática artística de Jéssica Burrinha. Em Na Fragilidade do que persiste, a artista apresenta-nos Tão Longe (2019-2025), um volumoso conjunto de cartas em cerâmica empilhadas sobre uma estrutura de terra crua. Jéssica Burrinha parte da correspondência trocada entre as gerações anteriores para resgatar um tempo velado na caligrafia criptográfica, no papel amarelecido e na tinta já desvanecida. Estas cartas, sem coordenadas ou indicação do seu destinatário, são as cartas perdidas durante o período da Guerra Colonial, que persistem precisamente porque o seu propósito não foi ainda cumprido. Resultado de um reaproveitamento da terra utilizada em algumas das suas esculturas anteriores, Tão Longe é, de facto, o que persiste: é a terra que resiste ao gesto compulsivo de (re)fazer o próprio trabalho artístico; são as cartas que perduram no tempo – errantes e fantasmagóricas, sempre propensas ao esquecimento e ao empilhamento anónimo.

Em Contra tempo (2018-2025), de Eduardo Freitas, finda-se um ciclo da matéria. Os ossos que eram corpo tornam-se, enfim, pedra. Ainda que intimamente associados à dimensão ritualística do ato de comer – temática transversal à obra do artista –, os ossos que vemos suspensos nesta pequena sala da galeria são, aqui, objeto de uma releitura. Enceta-se um jogo entre a aparente leveza e o peso da pedra em suspensão, a durabilidade do material e a permanente iminência de um estilhaçar: é a fragilidade da vida que está em causa. O artista parece apropriar-se do género vanitas e do imaginário visual da cidade de Évora para reconstruir, à sua imagem, uma capela dos ossos. Esta capela não é, no entanto, convidativa à nossa entrada. Receamos reencontrar nesta obra as palavras inscritas sobre a ombreira da porta da Capela dos Ossos, na Igreja de São Francisco: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos.” Por isso, recuamos, regressamos à restante exposição expectantes de um qualquer escape deste ciclo que – como uma gaiola – nos aprisiona. Mas há uma consciência da transitoriedade da vida que atravessa todas as peças e que, como tal, não nos deixa escapar. Afinal, a única certeza que levamos desta exposição é de que, no fim, restam apenas a memória, os ossos, as peles que largamos pelo caminho, e sete palmos de terra.[1]

Na Fragilidade do que persiste está patente na Galeria Municipal Jovem de Vila Franca de Xira até 15 de março.

 

 

[1] Adaptação de “Nascemos sem nada (…) Partimos desta vida sem nada levar, a não ser…sete palmos de terra”, em A terra que um Homem Precisa, de Lev Tolstoi.

BIOGRAFIA
Maria Inês Mendes frequenta o mestrado em Crítica e Curadoria de Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2024, concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. Escreve sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Realizou um estágio curricular na Umbigo Magazine e, desde então, tem vindo a publicar regularmente. Colaborou recentemente com o BEAST - Festival de Cinema da Europa do Leste.
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