Com curadoria de João Mourão e Luís Silva, o percurso expositivo constrói-se como um espaço de suspensão onde o trauma é filtrado por pequenos gestos de cuidado: costurar, bordar, embalar, desenhar. A exposição articula diferentes práticas artísticas e mobiliza uma linguagem ficcional, por vezes alegórica, de maneira a ser possível aceder a experiências que resistem à nomeação direta. Não se trata de reconstruir uma narrativa linear, mas de acolher e perscrutar aquilo que, sendo íntimo, é também histórico e coletivo.
Com traços de uma estética naïf, a infância ocupa um lugar central, não como um espaço angelical, mas como território permeável ao medo. Um medo que, despido de metáforas, se manifesta como instinto. A narrativa que pauta a exposição reconhece a simultaneidade entre vulnerabilidade e lucidez. A criança que habita aquele espaço é um corpo que, intercetado pelo conflito, vê em atos que exigem paciência uma forma de escape. Sujeita à perda, a criança transforma o medo em gesto.
Numa lógica do cuidado e do remendo, Al Solh constrói uma linguagem visual simultaneamente afetiva e política. Noções como lar e infância ganham um lugar de destaque: não como espaços idealizados, mas como territórios marcados pela fragilidade e pela persistência. As paredes em tons lilases suavizam a luz, enquanto vozes infantis, em canções de embalar, pontuam o percurso do visitante. As roupas estendidas como em pátios domésticos exibem marcas: furos, remendos, cicatrizes cosidas com desenhos infantis. São vestígios de um gesto que insiste em reparar. Aqui, o ato de coser é mais do que um trabalho manual: é uma forma de continuar.
Assim, entre a memória pessoal da infância em Beirute e a catástrofe coletiva da migração forçada, Al Solh constrói um léxico visual onde o rosa, o preto e o traço naïf convivem com burros de carga cujos viajantes foram privados de identidade. A presença da palavra, em árabe e inglês, desenhada a traço livre ou inscrita em balões de fala, não funciona como mera legenda. Ambígua e fragmentada, inscreve a multiplicidade linguística do sujeito migrante.
Há uma forma de esperança que não recua perante a violência e é nesse espaço que ressoam as palavras de Han Kang quando, em Atos Humanos, escreve: O fio da vida é tão forte como o tendão de um boi. O tendão não é frágil nem volátil: é rijo, fibroso, resistente ao rasgo. Invisível, mas essencial, é ele que sustenta o movimento. E como arquivo físico da opressão surge a figura do boi – aquele que aguenta, carrega, resiste, como muitos corpos silenciados pela guerra, pela migração, pela história do tempo. Embora a figura do boi não surja de forma explícita em Al Solh, a sua força simbólica ressoa nos corpos que a artista convoca.
Assim, apesar da violência que dilacera corpos e memórias, permanece uma força insistente, invisível, que sustenta o gesto de continuar. É essa força, silenciosa e persistente, que a artista convoca em cada tecido remendado. Um ato repetido de reparação, iniciado na infância, durante a Guerra Civil Libanesa (1975–1990), e que, após a explosão no Porto de Beirute, em 2020, ganhou nova dimensão ao tornar-se coletivo. Esse gesto passou então a ser partilhado com um grupo de mulheres libanesas e holandesas, incluindo migrantes, que, ao rasgar e remendar as suas próprias roupas de dormir, partilhavam histórias de perda, persistência e cuidado.
Como metáfora da arbitrariedade que estrutura os efeitos da violência, vemos essas roupas estendidas. Mas é também entre esses pijamas que, no final da exposição, vemos projetada a criança que até então nos acompanhou. Contudo, agora surge metamorfoseada: sujeito em fuga, consciência lúcida, corpo que age e resiste.
Afinal, narrar é já resistir.
A exposição está patente na Fundação de Serralves até dia 31 de agosto.