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Por via da Vida – Waiting Around to Die, de Henrique Pavão
DATA
19 Fev 2024
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AUTOR
Maria Brás Ferreira
Waiting Around to Die, mostra de Henrique Pavão, com curadoria de Adriana Molder, patente na galeria Casa A. Molder, constitui antes de qualquer referência cultural – o título é o nome de uma canção, de 1968, de Townes Van Zandt – uma alusão à música como uma interrupção do silêncio, sem, todavia, jamais o abandonar.

Waiting Around to Die, exposição de Henrique Pavão com curadoria de Adriana Molder, patente na galeria Casa A. Molder, constitui, antes de qualquer referência cultural – o título é o nome de uma canção de 1968, de Townes Van Zandt -, uma alusão à música como uma interrupção do silêncio, sem, todavia, jamais o abandonar. O mesmo seria dizer: a música está prenhe de silêncio, assim como, bruta analogia, a vida está prenhe de morte. Duas esculturas – ou será uma só? – dispõem-se em duas salas contíguas na galeria, à Baixa de Lisboa. O vazio impera. Não se trata já de sair ou entrar numa casa. De habitar ou desabitar um espaço. Poderia tratar-se de um manifesto à situação geral de despejo a que tanta gente se vê submetida, e em tantas cidades por todo o mundo, vergada que é a nossa condição de participantes de um capitalismo feroz e sem medida, de que somos, de qualquer modo, os inevitáveis consumidores e, portanto, os fiéis praticantes. O movimento sugerido por Henrique Pavão está além ou aquém, enfim, furta-se a uma problemática epocal que equacione a crise e os seus efeitos específicos, por relação a um tempo particular.

Dissemos que não se trata de entrar nem de sair do espaço. Pois bem, pela sugestão da música, como elemento tão congregador quanto responsável pela reminiscência de tempos outros que bifurcam o presente e o tornam num instante diluído, o que o artista nos propõe é pensar o momento presente como um palimpsesto complexo, heterogéneo, múltiplo, enfim, indecidível. O presente é fundamentalmente projectado como duração, e esta não enquanto período em apelo de soluções temporárias para justamente passar o tempo – esperar a morte -, mas o presente enquanto o recreio, do qual somos o corpo e a escrita que torna legíveis – momentaneamente legíveis, aliás, como toda a escrita – os acidentes que nesse mesmo recreio tomam lugar. Encontramo-nos, ao contrário do que primeiro se poderia supor, num espaço cheio, não paradoxalmente impositivo por um despojamento cénico construído por Pavão.

O vazio não deixa de perdurar – como uma sinfonia de que restam os instrumentos em repouso, conquanto ainda vibrantes. Trata-se de um vazio meticulosamente construído, impressionante na arquitectura sóbria dos objectos no espaço. Um cabo de cem metros enrolado e deixado aparentemente ao acaso, no chão, numa sala. Na divisão contígua, o crânio de uma vaca envolta em bronze. Entre os dois corpos presentes – cabo e crânio – e os elementos intrínsecos à arquitectura da galeria – chão, paredes, janelas, tecto – não há senão uma contiguidade devastadora que torna transportáveis os limites das formas no espaço, realojados segundo uma lógica poética da espera. E da espera de nada. Pois esperar não é nunca um acto univocamente direccionado para qualquer coisa que se deseja. É sempre o que se deseja, vivido a partir do seu negativo, isto é, pela detenção de tudo o que não se deseja. Assim, o acto de esperar – lembre-se o título da exposição – não pode jamais prevenir o sujeito mais curioso sobre de que se está, afinal, à espera. Esperar pela morte será uma forma particularmente sagaz de o dizer: ora, quem espera pela morte, quem diz simplesmente esperar pela morte, está tão profundamente concentrado no acto profano de a afastar – porque esperando não se pode senão afastar a morte, aproximando-a – que só pode revelar as palavras, não na sua insuficiência, mas justamente no excesso que as constitui enquanto formas aferradas de se manter ligado à vida, revelando, pois, morte e vida como a cara e a coroa jamais desambiguadas de um jogo que permanece jogo. Pode morrer ser um objectivo? Pode, reformule-se, morrer constituir uma meta atingida? Um trabalho mais ou menos bem feito? A nota do desempenho recai, insidiosamente recai, sobre a vida. Eis o imenso intervalo que separa a vontade, o desejo, da sua concretização. Eis o segredo sobre o qual todo o acto será uma forma de resistir como forma perdão, perdão da vida sobre a morte, precisamente o perdão de nada poder dizer, de nada poder querer significar além do dito, do feito, em suma, do vivido, do negativo da morte, todavia prenhe de morte, da sua visão, do seu segredo partilhado mas não desvelado.

O homem não prescinde de uma pauta, mais ainda do que do som difundido – se a música está cheia de silêncio, este não se comunica senão por contraste, isto é, com uma sinfonia a tocar por dentro. Uma das formas de o fazer é lendo uma pauta, desdobrando musicalmente os objectos com que nos defrontamos. O cabo e o crânio são, pois, uma pauta para uma sinfonia perdida, por encontrar. Procura essa que torna virtual e puramente contingente qualquer semelhança com a sinfonia anterior. A sinfonia presente será sempre uma sinfonia outra. Será a morte da forma que se cria ser uma e una e que dá agora lugar a uma nova. O cabo no chão terá servido para amplificar o som de uma guitarra eléctrica deixada pelo artista no campo, à mercê dos movimentos da natureza que assim estimulavam as cordas, produzindo uma melodia audível pelo espaço. No espaço interior de uma galeria é a perda de uma amplificação que se testemunha, mas uma perda que não resiste, por via da vida, a dar origem a novas amplificações. É outro o cabo, é outro o crânio, e o campo vibrante e o animal ainda de sangue quente, já não podemos imaginar senão entoando, num murmúrio, essa canção que ainda esperamos se componha no ar, contra o silêncio, canção que já não é apenas canal de som, vestígio de vida passada, mas quarto vazio, mesmo à saída da vida, se o mundo for uma estação e o corpo uma pousada.

 

A autora não escreve ao abrigo do artigo A90.

BIOGRAFIA
Mestre em Estudos Portugueses, com a tese “Modos de Cindir para Continuar: uma leitura de A Noite e o Riso e Estação, de Nuno Bragança”, pela Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a tirar o doutoramento, preparando uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (2020) e Rasura (2021). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.
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