Várias colunas são dispostas na sala. Cada uma reproduz um áudio, todos numa voz feminina, com um enunciado diferente: pela coluna da esquerda, uma mulher chama senhas e enuncia o respectivo gabinete a que o portador da senha deverá dirigir-se (“Gabinete”); na coluna central uma mulher diz “Look at me”; e das dez colunas à direita, são ditos vários nomes, mulheres apresentando-se, multiplicidade redutível ao nome próprio que designa a peça, “Aida”. Se cada secção sonora reproduz um enunciado diferente, gerando um efeito de coro desfasado — mais do que em cânone, por não lograr, ao contrário deste, qualquer harmonia —, curioso é que um elemento comum seja a voz feminina, sugerindo uma unidade identitária, ou enquanto construção fictícia, ilusão habitável, ou enquanto operador da tentação de identificar as vozes com a artista que sabemos ter assinado aquelas obras. Todavia, qualquer sugestão de unidade parece existir única e exclusivamente para atestar a ausência de provas nesse sentido. Assim sendo, o que temos é o sinal — e não a prova, cuja aparição é sempre referencial e devedora de uma narrativa — da impossível fixação identitária, paradoxalmente consubstanciada na manifestação incorpórea da voz. A par da impossível identidade, do rosto negado, da voz apresentada imediatamente como eco, circularidade delirante cujo primeiro suposto referente se encontra furtado de qualquer experiência e testemunho, é exposta a linguagem enquanto matéria vergada à funcionalidade de todos os dias, sob a forma de automatismo: seja em ambiente clínico (“Gabinete”), seja num apelo de atenção viciado e necessariamente dito numa língua estrangeira (“Look at me”) ou na apresentação pelo nome próprio (ou próprio nome?) (“Aida”). Se as palavras e os respectivos sentidos são aqui revelados na sua arbitrariedade mais fundamental, o espectador convence-se, e bem, de que o uso que delas fazemos — enquanto sociedade e não comunidade — é invariavelmente dessensibilizado.
Assim, o espectador que escolha permanecer na sala de exposição — ciente dessa proto-habitação do espaço — fica ciente do seu olhar de resistência, atento, de renovação de uma semântica do poder para uma significação afectiva e, invariavelmente, intransmissível. Uma tal consciencialização faz-se, pois, a par da aparição da face mais mesquinha da linguagem: a do poder, cuja estrutura é sempre arbitrária, gerando, todavia, códigos tiranicamente previsíveis.
A artista escolhe nomear a exposição com a expressão Senha Z 672. Trata-se de uma expressão representativa de uma passagem, da transmissão de um testemunho despido de sentido no automatismo que concentra a funcionalidade que é, ainda que consequente (normalmente, a entrada e saída num espaço de prestação de algum serviço). Reforçando a ideia de arbitrariedade, o nome da exposição exige ou, pelo menos, apela, a uma forma de estar diversa, aliás, alternativa, obrigando a uma passagem menos passageira, poderia dizer-se.
O presente trabalho de Luísa Cunha propõe a transfiguração do olhar, a geração de uma revolução pontual, e em concentrado, acerca dos modos vários com que nos relacionamos no e com o espaço, como escolhemos recortar-nos contra um fundo que, a rimar com a robotização da vida contemporânea, é forçosamente incorpóreo, como a voz que não é para ser escutada mas tão-só recebida, a voz que é som ruidoso, como o branco que não é senão eco de um branco supostamente mais branco. E nós sempre vergados a seguir escalas, a relacionarmo-nos segundo aumentativos e diminutivos, situando-nos, afinal, ao largo das coisas propriamente ditas. Senha Z 672 manifesta-se, diz-se, ao mesmo tempo obrigando o espectador a escutar e o ouvinte a ver. Mesmo que seja num silêncio arredado de qualquer cifra. Talvez seja essa a grande fortuna da arte: apresentar-nos uma nova língua, fazer-nos esquecer as outras — doce Babel, Babel dita, adoçada.