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Senha Z 672, de Luísa Cunha
DATA
21 Out 2025
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AUTOR
Maria Brás Ferreira
A exposição de Luísa Cunha, Senha Z 672, patente na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa, abre-se à noção da arte como resistência, antes de mais, no modo como propõe uma deslocação da configuração técnica de “cubo branco” — termo que diz respeito ao espaço de exposição da arte moderna e contemporânea — para a configuração sensível de um cubo cinza. Pouco importa de que cor estão pintadas as paredes. Importa, sim, a activação da escuta a que o espectador é forçado, por via de uma experiência do ruído realizada no espaço da galeria.
Várias colunas são dispostas na sala. Cada uma reproduz um áudio, todos numa voz feminina, com um enunciado diferente: pela coluna da esquerda, uma mulher chama senhas e enuncia o respectivo gabinete a que o portador da senha deverá dirigir-se (“Gabinete”); na coluna central uma mulher diz “Look at me”; e das dez colunas à direita, são ditos vários nomes, mulheres apresentando-se, multiplicidade redutível ao nome próprio que designa a peça, “Aida”. Se cada secção sonora reproduz um enunciado diferente, gerando um efeito de coro desfasado — mais do que em cânone, por não lograr, ao contrário deste, qualquer harmonia —, curioso é que um elemento comum seja a voz feminina, sugerindo uma unidade identitária, ou enquanto construção fictícia, ilusão habitável, ou enquanto operador da tentação de identificar as vozes com a artista que sabemos ter assinado aquelas obras. Todavia, qualquer sugestão de unidade parece existir única e exclusivamente para atestar a ausência de provas nesse sentido. Assim sendo, o que temos é o sinal — e não a prova, cuja aparição é sempre referencial e devedora de uma narrativa — da impossível fixação identitária, paradoxalmente consubstanciada na manifestação incorpórea da voz. A par da impossível identidade, do rosto negado, da voz apresentada imediatamente como eco, circularidade delirante cujo primeiro suposto referente se encontra furtado de qualquer experiência e testemunho, é exposta a linguagem enquanto matéria vergada à funcionalidade de todos os dias, sob a forma de automatismo: seja em ambiente clínico (“Gabinete”), seja num apelo de atenção viciado e necessariamente dito numa língua estrangeira (“Look at me”) ou na apresentação pelo nome próprio (ou próprio nome?) (“Aida”). Se as palavras e os respectivos sentidos são aqui revelados na sua arbitrariedade mais fundamental, o espectador convence-se, e bem, de que o uso que delas fazemos — enquanto sociedade e não comunidade — é invariavelmente dessensibilizado.
Assim, o espectador que escolha permanecer na sala de exposição — ciente dessa proto-habitação do espaço — fica ciente do seu olhar de resistência, atento, de renovação de uma semântica do poder para uma significação afectiva e, invariavelmente, intransmissível. Uma tal consciencialização faz-se, pois, a par da aparição da face mais mesquinha da linguagem: a do poder, cuja estrutura é sempre arbitrária, gerando, todavia, códigos tiranicamente previsíveis.
A artista escolhe nomear a exposição com a expressão Senha Z 672. Trata-se de uma expressão representativa de uma passagem, da transmissão de um testemunho despido de sentido no automatismo que concentra a funcionalidade que é, ainda que consequente (normalmente, a entrada e saída num espaço de prestação de algum serviço). Reforçando a ideia de arbitrariedade, o nome da exposição exige ou, pelo menos, apela, a uma forma de estar diversa, aliás, alternativa, obrigando a uma passagem menos passageira, poderia dizer-se.
O presente trabalho de Luísa Cunha propõe a transfiguração do olhar, a geração de uma revolução pontual, e em concentrado, acerca dos modos vários com que nos relacionamos no e com o espaço, como escolhemos recortar-nos contra um fundo que, a rimar com a robotização da vida contemporânea, é forçosamente incorpóreo, como a voz que não é para ser escutada mas tão-só recebida, a voz que é som ruidoso, como o branco que não é senão eco de um branco supostamente mais branco. E nós sempre vergados a seguir escalas, a relacionarmo-nos segundo aumentativos e diminutivos, situando-nos, afinal, ao largo das coisas propriamente ditas. Senha Z 672 manifesta-se, diz-se, ao mesmo tempo obrigando o espectador a escutar e o ouvinte a ver. Mesmo que seja num silêncio arredado de qualquer cifra. Talvez seja essa a grande fortuna da arte: apresentar-nos uma nova língua, fazer-nos esquecer as outras — doce Babel, Babel dita, adoçada.
A exposição pode ser visitada até dia 25 de outubro na Galeria Miguel Nabinho.
BIOGRAFIA
Mestre em Estudos Portugueses, pela Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre Nuno Bragança. Encontra-se a escrever uma tese de doutoramento sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira e a melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: “E o Coração de Soslaio a Todo o Custo” (2025) e “Penhasco” (2025). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.
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