Comissariadas por João Laia, Profundidade de Campo de Mónica de Miranda, concebida em co-curadoria com Nuno Crespo, e Escarlate Profundo, Rubi Gritante – The Freestanding Joys, de Pauline Curnier Jardin, exploram variações sobre a imagem em movimento, o corpo e os regimes da sua representação. Inseridas na linha programática da instituição sob a direção artística de Laia, estas propostas projetam a Galeria como um lugar de produção e articulação de pensamento contemporâneo, onde o dispositivo expositivo funciona como uma ferramenta para revelar as tensões estéticas, sociais e conceptuais que atravessam a arte na contemporaneidade.
Em Profundidade de Campo, no Piso 1 da GMP, Mónica de Miranda remete para um território expandido de significados que se relacionam de forma ramificada, deslocando-se entre três níveis distintos. Em primeiro lugar, o título reverbera no próprio espaço expositivo, em analogia com a perspetiva forçada da geometria triangular da sala do mezanino, que afunila desde o seu acesso e posiciona quem visita como figura observada no interior de uma perspetiva cónica. Por outro lado, evidencia a centralidade da instalação em vídeo pelo recurso a um termo técnico da fotografia e cinematografia, determinado pela distância focal, pela abertura do diafragma que regula a entrada de luz e pela distância do sujeito em relação à câmara. E convoca ainda uma ideia de profundidade, do ponto de vista histórico, ecológico e cosmo-biológico, que reflete a pesquisa conceptual da artista, ancorada na interrogação da memória pelos corpos da diáspora no contexto pós-colonial, a partir de um país assente em narrativas imperialistas. Este ponto de fuga é tripartido pelas projeções de vídeo que o interrompem desde Tudo o que arde dissolve-se no ar (2020), que propõe uma leitura do presente sobre as camadas de destruição e apagamento na paisagem da ilha de São Tomé, até Transplantar (2024), apresentada por Mónica de Miranda na 60.ª Bienal de Arte de Veneza, na representação portuguesa: uma coreografia cerimonial que entrelaça o deslocamento e enraizamento envolvidos no violento movimento do colonialismo, ressoando nos espaços de pertença criados por comunidades migrantes africanas. Mas é n’A Ilha (2022) que a ficção se traduz como estratégia para expor o real através de personagens arquetípicas, figuras luminárias de mutantes e sentinelas num mundo pós-colonial em iminência de colapso climático. Uma utopia insular que emerge como espaço híbrido, imaginado e insurgente, onde biografias individuais e coletivas se desenvolvem numa contra narrativa imbuída pelo peso da palavra como presença mineral e em que o futuro, intimado pela história, se torna possibilidade ativa de reescrita.
Em torno deste tríptico constitui-se o Intervalo Temporal (2025), uma instalação escultórica e cartográfica composta por palcos vivos e reconfiguráveis, ativados ao longo do tempo numa dimensão colaborativa que contraria as lógicas de exclusão ao prolongar-se num conjunto de intervenções performativas e discursivas, a terminar em Reverberações de um corpo-tela, por Wura Moraes, com duas sessões a 7 de junho. Escadarias e bancadas em madeira, assinaladas por plantas, em diálogo com caixilharias do tamanho de portas, ora vazias, ora preenchidas por espelhos verticais ou rebatidos e por cortinas vermelhas. Estes elementos compõem uma arquitetura fragmentada, um lugar de escuta política e efabulação ecológica onde, em consonância com o pensamento de Amílcar Cabral, o solo surge como portador de história e o corpo como território em deslocamento, ambos mediadores de uma expressão decolonial.
A exposição Escarlate Profundo, Rubi Gritante, com o subtítulo The Freestanding Joys, da artista francesa Pauline Curnier Jardin, ocupa o amplo espaço do Piso 0 da GMP como um circo itinerante atravessado por uma cenografia catedralesca de objetos e símbolos associados aos corpos femininos e queer, de grupos marginalizados no contexto europeu, reinterpretados por distorções e ampliações plásticas. Organizadas num circuito sinuoso, marcado por um jogo de luz que lhes atribui gradações tonais do grave ao estridente, e com o contributo da cenógrafa Rachel Garcia que evoca uma teatralidade pelo uso transformado dos materiais, estas instalações em grande escala desordenam as lógicas do poder e da indústria do espetáculo ao aludir ao parque de diversões e ao teatro de resistência, deslocando-os para dentro da galeria. Curnier Jardin assume o papel de contadora de histórias, mas na recusa da linearidade constrói uma rede dissonante de esculturas, vídeos e performances que questionam a autoridade dos discursos sexistas, idadistas e heteronormativos. Em Floresta dos Afrontamentos (2019), uma geografia espectral de peles sintéticas simula partes de corpos femininos envelhecidos e fragmentados nas peaux de dame, desmascarando a desvalorização sistemática da presença feminina. Um traço felliniano retrodatado insinua-se em Cinema Luna (2022), onde esquemas figurativos revisitam as mulheres que, durante o pós-guerra alemão, reconstruíram cidades e identidades. Por fim, a exposição desemboca numa arena monumental em Gordura a Cinzas (2021) que remete muito superficialmente para um bolo de noiva derretido, com pequenas velas a delinear o topo e o toque de um sino a marcar a entrada do perímetro, conduzindo quem visita a uma bancada em anfiteatro numa zona de projeção de imagens, transferidas de 16 mm e de filme super 8, que se sucedem em celebrações religiosas, festividades populares e na matança ritual do porco numa aldeia de montanha, para compor uma crítica sobre o espetáculo e a persistência das suas violências simbólicas.
Destacado ao centro, o Túnel do Amor (2024) ergue-se como uma miragem de um bouquet invertido que nos convida a percorrer um túnel cuja estrutura, assente em esteios, desenha a silhueta de um coração estilizado. Lá dentro, Qu’un Sang Impur / Sangrar (2019) retoma as peaux de dame para interrogar formas de repressão social e sexual, ecoando o filme de Jean Genet, Un Chant d’Amour (1950). Entre vinhetas humorísticas e encenações radicais, a artista denuncia a exploração destes corpos, tornados submissos enquanto objetos de entretenimento e controlo, ao desvendar a sua invisibilidade, a imposição de papéis de género e as estruturas patriarcais perpetuadas por convenções que continuam a condicionar as narrativas visuais e a moldar o olhar sobre o outro, instaurando assim uma heresia crítica que desafia o que é aceite e representado.
As exposições Profundidade de Campo, que inclui ainda uma extensão na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto, e Escarlate Profundo, Rubi Gritante – The Freestanding Joys podem ser visitadas na Galeria Municipal do Porto até 15 de junho de 2025. Está também patente no mais recente espaço da GMP, no Piso -1, a exposição Forma Primeira de Francisco Pedro Oliveira, com curadoria de Isabeli Santiago, até 22 de junho de 2025.