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Mónica de Miranda e Pauline Curnier Jardin, na Galeria Municipal do Porto
DATA
05 Jun 2025
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AUTOR
Rita Barqueiro
A Galeria Municipal do Porto (GMP) apresenta duas exposições que, partindo de abordagens artísticas autónomas, se inscrevem num mesmo horizonte curatorial.
Comissariadas por João Laia, Profundidade de Campo de Mónica de Miranda, concebida em co-curadoria com Nuno Crespo, e Escarlate Profundo, Rubi Gritante – The Freestanding Joys, de Pauline Curnier Jardin, exploram variações sobre a imagem em movimento, o corpo e os regimes da sua representação. Inseridas na linha programática da instituição sob a direção artística de Laia, estas propostas projetam a Galeria como um lugar de produção e articulação de pensamento contemporâneo, onde o dispositivo expositivo funciona como uma ferramenta para revelar as tensões estéticas, sociais e conceptuais que atravessam a arte na contemporaneidade.
Em Profundidade de Campo, no Piso 1 da GMP, Mónica de Miranda remete para um território expandido de significados que se relacionam de forma ramificada, deslocando-se entre três níveis distintos. Em primeiro lugar, o título reverbera no próprio espaço expositivo, em analogia com a perspetiva forçada da geometria triangular da sala do mezanino, que afunila desde o seu acesso e posiciona quem visita como figura observada no interior de uma perspetiva cónica. Por outro lado, evidencia a centralidade da instalação em vídeo pelo recurso a um termo técnico da fotografia e cinematografia, determinado pela distância focal, pela abertura do diafragma que regula a entrada de luz e pela distância do sujeito em relação à câmara. E convoca ainda uma ideia de profundidade, do ponto de vista histórico, ecológico e cosmo-biológico, que reflete a pesquisa conceptual da artista, ancorada na interrogação da memória pelos corpos da diáspora no contexto pós-colonial, a partir de um país assente em narrativas imperialistas.
Este ponto de fuga é tripartido pelas projeções de vídeo que o interrompem desde Tudo o que arde dissolve-se no ar (2020), que propõe uma leitura do presente sobre as camadas de destruição e apagamento na paisagem da ilha de São Tomé, até Transplantar (2024), apresentada por Mónica de Miranda na 60.ª Bienal de Arte de Veneza, na representação portuguesa: uma coreografia cerimonial que entrelaça o deslocamento e enraizamento envolvidos no violento movimento do colonialismo, ressoando nos espaços de pertença criados por comunidades migrantes africanas. Mas é n’A Ilha (2022) que a ficção se traduz como estratégia para expor o real através de personagens arquetípicas, figuras luminárias de mutantes e sentinelas num mundo pós-colonial em iminência de colapso climático. Uma utopia insular que emerge como espaço híbrido, imaginado e insurgente, onde biografias individuais e coletivas se desenvolvem numa contra narrativa imbuída pelo peso da palavra como presença mineral e em que o futuro, intimado pela história, se torna possibilidade ativa de reescrita.
Em torno deste tríptico constitui-se o Intervalo Temporal (2025), uma instalação escultórica e cartográfica composta por palcos vivos e reconfiguráveis, ativados ao longo do tempo numa dimensão colaborativa que contraria as lógicas de exclusão ao prolongar-se num conjunto de intervenções performativas e discursivas, a terminar em Reverberações de um corpo-tela, por Wura Moraes, com duas sessões a 7 de junho. Escadarias e bancadas em madeira, assinaladas por plantas, em diálogo com caixilharias do tamanho de portas, ora vazias, ora preenchidas por espelhos verticais ou rebatidos e por cortinas vermelhas. Estes elementos compõem uma arquitetura fragmentada, um lugar de escuta política e efabulação ecológica onde, em consonância com o pensamento de Amílcar Cabral, o solo surge como portador de história e o corpo como território em deslocamento, ambos mediadores de uma expressão decolonial.
A exposição Escarlate Profundo, Rubi Gritante, com o subtítulo The Freestanding Joys, da artista francesa Pauline Curnier Jardin, ocupa o amplo espaço do Piso 0 da GMP como um circo itinerante atravessado por uma cenografia catedralesca de objetos e símbolos associados aos corpos femininos e queer, de grupos marginalizados no contexto europeu, reinterpretados por distorções e ampliações plásticas. Organizadas num circuito sinuoso, marcado por um jogo de luz que lhes atribui gradações tonais do grave ao estridente, e com o contributo da cenógrafa Rachel Garcia que evoca uma teatralidade pelo uso transformado dos materiais, estas instalações em grande escala desordenam as lógicas do poder e da indústria do espetáculo ao aludir ao parque de diversões e ao teatro de resistência, deslocando-os para dentro da galeria.
Curnier Jardin assume o papel de contadora de histórias, mas na recusa da linearidade constrói uma rede dissonante de esculturas, vídeos e performances que questionam a autoridade dos discursos sexistas, idadistas e heteronormativos. Em Floresta dos Afrontamentos (2019), uma geografia espectral de peles sintéticas simula partes de corpos femininos envelhecidos e fragmentados nas peaux de dame, desmascarando a desvalorização sistemática da presença feminina. Um traço felliniano retrodatado insinua-se em Cinema Luna (2022), onde esquemas figurativos revisitam as mulheres que, durante o pós-guerra alemão, reconstruíram cidades e identidades. Por fim, a exposição desemboca numa arena monumental em Gordura a Cinzas (2021) que remete muito superficialmente para um bolo de noiva derretido, com pequenas velas a delinear o topo e o toque de um sino a marcar a entrada do perímetro, conduzindo quem visita a uma bancada em anfiteatro numa zona de projeção de imagens, transferidas de 16 mm e de filme super 8, que se sucedem em celebrações religiosas, festividades populares e na matança ritual do porco numa aldeia de montanha, para compor uma crítica sobre o espetáculo e a persistência das suas violências simbólicas.
Destacado ao centro, o Túnel do Amor (2024) ergue-se como uma miragem de um bouquet invertido que nos convida a percorrer um túnel cuja estrutura, assente em esteios, desenha a silhueta de um coração estilizado. Lá dentro, Qu’un Sang Impur / Sangrar (2019) retoma as peaux de dame para interrogar formas de repressão social e sexual, ecoando o filme de Jean Genet, Un Chant d’Amour (1950). Entre vinhetas humorísticas e encenações radicais, a artista denuncia a exploração destes corpos, tornados submissos enquanto objetos de entretenimento e controlo, ao desvendar a sua invisibilidade, a imposição de papéis de género e as estruturas patriarcais perpetuadas por convenções que continuam a condicionar as narrativas visuais e a moldar o olhar sobre o outro, instaurando assim uma heresia crítica que desafia o que é aceite e representado.
As exposições Profundidade de Campo, que inclui ainda uma extensão na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto, e Escarlate Profundo, Rubi Gritante – The Freestanding Joys podem ser visitadas na Galeria Municipal do Porto até 15 de junho de 2025. Está também patente no mais recente espaço da GMP, no Piso -1, a exposição Forma Primeira de Francisco Pedro Oliveira, com curadoria de Isabeli Santiago, até 22 de junho de 2025.
BIOGRAFIA
Mestranda em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, onde se formou em Estudos Artísticos com especialização em Estudos Cinematográficos e menor em Filosofia. Pós-graduada em Cinema e Audiovisuais pela Escola Superior Artística do Porto. Comprometida com as artes experimentais com foco em projetos artísticos multimédia e na relação do som com a imagem em movimento, motivos explorados na programação cultural e na produção sonora e locução numa prática radiofónica vinculada à Rádio Universidade de Coimbra.
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