A exposição de Francisco Pedro Oliveira, patente no Piso -1 da Galeria Municipal do Porto e com curadoria de Isabeli Santiago, assenta sobre o título Forma Primeira. Mais do que procurar ou tentar desvendar literalmente um estado primeiro, tarefa que passaria certamente por outros campos como a física ou a filosofia, a produção artística aqui presente parece desdobrar-se sobre a interrogação enquanto tal, sobre o caminho em seu torno e pela capacidade de com ela dialogar. Aceder a uma forma primeira, que necessariamente pressupõe a sua existência, poderia coincidir com a proposta de uma forma concreta enquanto tal: o som, a luz, a matéria... Ora, pelo contrário, esta prescrição não ocupa qualquer lugar, e se há, porventura, alguma forma primeira, será ela constante desdobramento da interação entre matéria e artista(-artesão). Vemos, então, três grandes painéis de inox suspensos e territorializados por gravações, iluminados por apenas uma fonte luminosa. Nesse sentido, lembrando as palavras de Deleuze e Guattari, se o artesão é necessariamente aquele que segue a matéria, a metalurgia ocupa particular destaque: “o que o metal e a metalurgia trazem à luz é a vida própria da matéria, um estado vital da matéria enquanto tal, um vitalismo material que sem dúvida existe em todo o lado, mas é normalmente escondido ou tapado, tornado irreconhecível, desassociado pelo modelo hilo-mórfico. A metalurgia é a consciência ou pensamento do fluxo-matéria, e o metal o correlato desta consciência.”2
Ora, estes painéis, marcados através do próprio ato de soldar, tornam-se agentes enquanto refletores da única luz que habita o espaço, dando a ver reflexos, cores e texturas dos materiais por onde passa. Luz essa que, até no espaço aparentemente vazio, cria um feixe de poeiras que revela a sua capacidade de dar a ver o outrora não-visto. Aliás, em toda a exposição, através de uma fonte única, esta explicita-se como a única forma de dar a ver qualquer elemento, não enquanto essência latente, mas como um recorte que revela no material uma possibilidade de, de algum modo, ser percecionado e sensibilizado. Neste sentido, torna-se evidente e palpável a forma como cada painel, intersetando o feixe luminoso numa iteração diferente do seu percurso, reflete a luz, e, portanto, forma-se enquanto objeto percebido, de forma radicalmente diferente. O metal e as marcas nele asseguradas só se formam enquanto imagem quando a luz, seja ela qual for, nelas insere, uma condição necessariamente contingencial. Se Francisco Pedro Oliveira escreve que “é feito – só depois se significa”3, a divisão entre estes dois momentos parece ser o ponto sobre o qual o trabalho se insere e para o qual a luz assume precisamente o papel de agente decisivo. Contudo, se é na luz que encontramos o elemento explicitador, a peça sonora que circula igualmente pela sala projeta-se precisamente sobre ela: forma primeira que ao ser marcada revela luz, som, metal; ao ser vista torna-se imagem e sensibilidade. A noção de marca e a criação de objetos surgem igualmente no vocabulário de Francisco Pedro Oliveira, onde o amuleto se assume enquanto esse objeto marcado, resultado de uma necessidade de materializar um traço, e que se torna livre no percurso subsequente. Deleuze e Guattari contextualizam esta dinâmica de forma semelhante quando dizem que “estas fíbulas, estas placas de ouro ou prata, estas peças de joalheria, estão apegadas a pequenos objetos móveis; eles não são apenas fáceis de transportar, mas pertencem ao objeto apenas como objeto em movimento. (...) Independentemente do esforço ou da labuta que implicam, são da ordem da ação livre, relacionada com a mobilidade livre, e não da ordem do trabalho com as suas ordens de gravidade, resistência e gasto”4. Se o trabalho é a atividade capturada, onde a significação final comanda o ato de criação e transformação, o amuleto encarna a inversão que constitui uma marcação que livremente e reiteradamente se significa.
A relação entre um ato expressivo que permanece intuitivo e um objeto que, por isso, permanece livre reside igualmente na oscilação constante entre o abstrato e o figurativo, que não constitui mais que um limite estabelecido apenas no momento da significação. Por entre os painéis que ocupam o espaço, e entre as manchas e cores luminosas que se formam, a linha, o ponto e a marcação intuitiva concretizam-se em rostos e objetos que, por sua vez, se desvanecem igualmente em linhas e pontos onde a delimitação clara é inconcebível. A criação de figuras, de imagens e conceitos não opera perante um objetivo de os encontrar concretamente, mas perante o intuitivo contacto entre o artista e a matéria, constantemente exibindo a sua forma primeira. Torna-se claro como esta inversão, a atribuição de um gesto artístico a uma marcação intuitiva, explicita uma questão fundamental: “Pode este devir, esta emergência ser chamada Arte? Isso tornaria o território um resultado da arte. O artista: a primeira pessoa a estabelecer uma pedra de limite, ou a fazer uma marca.”, do qual segue que: “o que é chamado de arte bruta não é de todo patológico ou primitivo; é meramente esta constituição, esta libertação, de matérias de expressão no movimento da territorialidade: a base ou fundamento da arte. Toma qualquer coisa e faz dela uma matéria de expressão.”5 Se a prática que inverte a lógica do trabalho capturado, que recusa a procura de uma intencionalidade definida para ser definida, se afirma enquanto artística, a sensibilidade diante desta abre-se perante uma sensibilidade diante de toda a matéria, diante do cosmos. Não deixa de ser notória a forma como, numa exposição onde aparentemente não haveria movimento, este surge, no som, invisível, e, acima de tudo, no feixe luminoso, que explicita um movimento que invisivelmente já lá estava, sempre lá está. Remetendo a uma escala cósmica, ao mesmo tempo coincidindo com o invisivelmente pequeno, a exposição rodeia esse movimento que escapa ao artista, que este apenas segue. Ou, se é que o conceito de artista faz sentido neste contexto: “não há imaginação fora da técnica. A figura moderna não é a criança ou o lunático, muito menos o artista, mas o artesão cósmico. (...) Ser um artesão e não mais um artista, criador ou fundador, é a única forma de se tornar cósmico, de deixar os milieus e a terra para trás. A invocação do Cosmos não opera de todo como uma metáfora; pelo contrário, a operação é efetiva, a partir do momento em que o artista se conecta ao material com forças de consistência ou consolidação. (...) as pessoas e a terra têm de ser como os vetores de um cosmos que as leva embora; então o próprio cosmos será arte. Da depopulação, fazer um povo cósmico; da deterritorialização, uma terra cósmica – esse é o desejo do artesão-artista, aqui, ali, localmente.”6 O artista-artesão torna-se um agenciador de matéria: aquele que dá a ver o cosmos já existente, mas que, através da sua luz, pode refletir alguma coisa.
Com curadoria de Isabeli Santiago, a exposição Forma Primeira está aberta até dia 22 de Junho.
1 Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, pp. 474, 477. Tradução livre
2 Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, p. 479. Tradução livre
3 Folha de sala da exposição
4 Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, pp. 467-468. Tradução livre
5 Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, pp. 368. Tradução livre
6 Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, pp. 401-402. Tradução livre