Guardo na memória uma imagem de leveza, uma flutuação que contraria a força gravítica, demonstrando que, por momentos, é possível nos elevarmos sob o peso da Terra, num corpo poético em movimento para além do espaço e do tempo.
À entrada da exposição, levita um conjunto de balões presos por um fio a uma pequena pedra. Ao longo do tempo, perderão o ar, contudo, numa ação de prestidigitação, retomam o volume e posição iniciais, como no dia 26 de novembro de 2004, em que o artista Spencer Finch suspendeu um conjunto de balões sobre a montanha russa Cyclone, em Coney Island, aludindo à diversão dos parques temáticos, ao jogo e ao ludismo efémero à beira mar. Sky over Coney Island (2004) é uma evocação, uma tentativa de materialização de uma memória onde cada balão tem a mesma cor e dimensão dos balões suspensos naquele dia do passado. Contudo, o seu sentido de leveza e flutuação plena é apenas alcançada pelas mãos daqueles que os voltam a encher à medida que perdem o ar. É, por isso, no cuidar invisível, para além do artista, que a evocação se torna ainda possível. E é também assim, subtilmente, que o ensaio sobre a leveza permanece em exposição, expandindo-se para as outras obras, como All for the Want of a Whisper (2017), de Joseph del Pesco, onde sete pilhas de cartazes contêm um texto/provérbio – uma referência ambiental e geopolítica – com fundos de diferentes tons de cinzento, num degradê de cor que contém os tons do céu enevoado da ilha do Fogo, ou ainda, GENERI© (1992), do coletivo artístico General Idea, um balão brilhante vermelho e amarelo fechado numa moldura, que nos remete para uma instalação concebida em 1992 com 3000 balões suspensos em forma de comprimido, numa referência ao flagelo da SIDA e às promessas vãs da indústria farmacêutica perante a exclusão social, a doença e a morte de milhões de pessoas. Ao contrário da obra Sky over Coney Island, os balões não se voltam a encher, descendo definitivamente para o chão, no sentido da morte de um corpo que se reergue, aqui, como memória.
A exposição prossegue com Homeless #4 (2021) de Carlos Bunga, onde a pintura e a natureza consomem, ambas, paisagens antropogénicas, dando lugar ao nomadismo do corpo e ao movimento, perante a ideia da perenidade da casa ou da civilização. É este jogo dual, entre a vida e a morte, que se expressa ao longo do espaço, evocando-se a leveza e, em paralelo, a densidade temática e/ou física das obras, como no caso de Bodice (2022) de Eric N. Mack, onde o peso do tecido industrial, com todas as conotações simbólicas que podemos daqui extrapolar, tem uma aparência flutuante que se impõe na arquitetura. E, reiteradamente, a gravidade e a oxidação dos corpos atua sobre a matéria viva e inanimada, como podemos ler nas entrelinhas de Flowers for Africa: Angola da artista Kapwani Kiwanga (2020), onde um bouquet de flores, encontrado em fotografias do dia da independência de Angola, é reinterpretado e replicado em cada exposição a partir de floristas locais, cujo corpo e identidade é sempre invisível perante a construção das narrativas históricas. O bouquet envelhece e as imagens retêm a complexidade simbólica.
Por fim, convocam-se os desenhos a grafite Shaman (2018, 2019) de Pootoogook, onde um corpo humano invoca um espírito alado, e Cloud Dance (1980), de Robyn Brentano e Andrew Horn, um filme-coreografia editada onde o corpo do bailarino dança entre a escultura de tecido da artista Leonore Tawney.
Tal como Calvino1, na conceção desta exposição, Rui Mateus Amaral escolhe a leveza, e não o peso, mesmo sabendo que quando falamos de flutuações ou de atmosferas rarefeitas, trata-se de um exercício de potência de vida perante um corpo que recolhe à terra e se torna pó, matéria ínfima e subtil, como a memória e o Antropos.
A exposição com obras de Robyn Brentano & Andrew Horn, Carlos Bunga, Spencer Finch, General Idea, Kapwani Kiwanga, Eric N. Mack, Joseph del Pesco e Johnny Pootoogook, com curadoria de Rui Mateus Amaral, está patente na Galeria 3+1 Arte Contemporânea até 25 de junho.
1 – Alusão a CALVINO, Italo, Leveza in Seis propostas para o novo milénio, editora Teorema, 2006 (1996 ed. original).
Nota adicional: Texto concebido a partir de visita guiada por Rita Anuar e da folha de sala da exposição 18 Maio 2022, de Rui Mateus Amaral.