A exposição, com curadoria de João Rolaça, não incide numa lógica puramente simbólica e objetual, mas, sobretudo, numa curadoria de processos. O projeto inscreve-se na continuidade do seu doutoramento, A Forma do Fogo: escultura cerâmica de larga escala e seus processos de cozedura, uma investigação que se abre à experimentação como forma de pensamento. Nesse sentido, a cozedura é um processo escultórico fundamental. Contudo, como se concebem esses fornos? E como se dá corpo a essas estruturas? Ao invés de utilizar tecnologias industriais de larga escala, Rolaça focou-se, em particular, na recuperação de práticas pouco documentadas desde a Grécia Antiga até à contemporaneidade. Este gesto não se limita à dimensão histórica e documental, mas configura sobretudo uma proposta teórico-prática de partilha de um escultor-ceramista. Esta conceção levou-o, em 2019, ao encontro dos Velar, uma comunidade de artesãos de Tamil Nadu que, geração após geração, erguem esculturas monumentais em terracota destinadas a contextos rituais.
Fruto da amizade que se foi formando, em 2025 três mestres Velar, Palanisamy Tharmalingam, Meyyar Rengasamy e Karthik Meyyar, foram convidados a integrar uma residência artística nas Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo. Ali deram corpo, segundo as suas próprias técnicas ancestrais, a figuras mitológicas de grande escala e outras figuras sagradas, recriando em solo português o compromisso espiritual que caracteriza o seu ofício. As condições materiais do território, nomeadamente a plasticidade distinta do barro, a humidade e a temperatura mais baixa do que a habitual em Tamil Nadu, introduziram alterações nos ritmos de secagem e cozedura do barro. Contudo, estas contingências evidenciaram também a resiliência de um saber milenar, capaz de se adaptar a um novo lugar.
As esculturas monumentais foram realizadas em secções distintas autoportantes - cabeça, patas e corpo - sendo as partes superiores concebidas através de paredes delgadas reforçadas pelo batimento de uma paleta de madeira na superfície exterior e de um maço de pedra no interior. O arroz, misturado e amassado com o barro pelos artesãos com os pés, conferiu resistência estrutural às formas, permitindo o aumento da escala e uma menor densidade, uma vez que se dissipa na cozedura. Nessa partilha de técnicas, tornada visível em cada etapa do trabalho, os mestres abriram o seu saber à observação e aprendizagem de outros. A residência culminou na construção de um forno de grande dimensão, aberto à participação pública, com um profundo caráter telúrico e comunitário.
Da conceção das formas e respetivas cozeduras, ao espaço expositivo no Museu do Oriente, opera-se uma transfiguração. As esculturas erguidas pelos mestres Velar em Montemor-o-Novo são apresentadas como se habitassem a floresta, evocando os santuários a céu aberto onde tradicionalmente se dispõem em Tamil Nadu. No museu, a escala imersiva devolve ao visitante a experiência de atravessar esse espaço liminar entre a natureza e as divindades. As figuras erguem-se diante de nós não como objetos isolados, mas como presenças tutelares.
No festival Kutirai Etuppu, dedicado a Ayyanar (divindade guardiã das aldeias e protetor noturno que cavalga pelas margens dos campos acompanhado por entidades que o auxiliam no combate contra os espíritos malignos), os artesãos produzem as esculturas votivas que serão oferecidas no templo ao ar livre, tais como Purna e Pushkala, acompanhantes femininas de Ayyanar, o guerreiro Karuppan, a deusa mãe Amman, o deus-elefante Ganesha do conhecimento e da superação, Naga, a serpente sagrada da fertilidade, o boi sagrado Nandi, ou ainda, os cães guardiões de Ayyanar. O momento da entrega das figuras votivas é marcado por um ritual de sacralização. Cumprida essa função, o seu destino não é a eternidade, mas a devolução à terra. As cozeduras são propositadamente leves, de modo a permitir que o sol e a chuva desgastem a matéria até que se desfaça e regresse à terra. As esculturas sucedem-se ao longo dos anos. Nos templos, é possível ver ao lado das mais recentes as antigas com diversos níveis de degradação, num ciclo contínuo de criação e dissolução.
A complexidade técnica da qual decorre a monumentalidade não se opõe à fragilidade da cozedura: é, pelo contrário, a sua condição. Ao invés da tradição clássica ocidental, que muitas vezes pensa a arte como permanência, aqui a obra nasce destinada a desaparecer. É nesse sentido cosmogónico que o encontro com os Velar reconfigura o olhar ocidental que permeia a própria noção de escultura, devolvendo-lhe uma dimensão telúrica em que a força do gesto não reside no objeto final, mas no ciclo material que o sustenta.
Para além do templo sagrado, outras presenças completam a exposição: os kolam, desenhos efémeros de farinha de arroz traçados quotidianamente pelas mulheres à entrada das suas casas, num gesto de proteção do lar e dádiva à natureza, alimento de insetos e pássaros; os Drishti Pombai, colocados nos telhados como guardiões contra o mau-olhado; diversas figuras votivas do acervo da Fundação Oriente; contextualizações antropológicas que se articulam com a técnicas, pensamentos, processos de escultura. Em paralelo, um núcleo escultórico da artista Liliana Velho, a qual realizou uma residência nas Oficinas do Convento durante a estadia dos mestres e nos apresenta um espaço de esculturas de pequena escala em terracota, artefactos em ressonância com o gesto ritual dos Velar.
Em Deuses de Terra / Escultura Velar, o segredo é a partilha dos processos, em Tamil Nadu, em Montemor-o-Novo ou em qualquer lugar onde o barro se ofereça à transformação.