A obra habita o lugar, assim como o lugar habita a obra, e é o corpo sempre nascente, a sua natureza naturante, que nos oferece as pistas que humanizam.
Relembro-me de um texto de Ursula K. Le Guin, The Carrier Bag Theory of Fiction (1986) [1], e imagino como este livro poderia habitar a obra de Mariana, nutrindo-a entre os seus livros-pinturas, num movimento em suspenso que se cria, creio, a partir da memória afetiva que penetra a realidade. Em Le Guin, ao invés do mito do herói, a narrativa tece-se em torno do subtil, dos momentos em que conseguimos ancorar ao corpo a cesta que guarda as sementes, partilhá-las, alimentar e escutar um amigo, retirar um espinho, limpar uma ferida. O fim não consiste em vencer o animal selvagem, conquistar territórios, poder ou nome, associá-los a um herói, mas sim, dissolver a própria ideia de fim e assumir o processo, as pequenas ações das vidas que se nutrem mutuamente, como o princípio em devir.
Esta prática do cuidar manifesta-se, sobretudo, na intimidade.
A simbólica nascente dos gestos perdura através dos afectos e a casa-pintura respira, reverbera o tempo vivido.
Diz-nos Byung-Chul Han que a crise temporal apenas “será superada no momento em que a vita activa, em plena crise, acolha de novo no seu interior a vita contemplativa” [2], um Belo que se desvela no exercício do recolhimento temporal que persiste através do vínculo emocional, da relação de proximidade que faz com que as coisas sejam reais.
Neste sentido, a pintura da Mariana é uma prática que se opõe à rapidez e dispersão dos acontecimentos. Entre as camadas de tinta a óleo, há o exercício de espera, o processo de secagem que confere ao tempo espessura e duração, como uma memória que emerge subtilmente. O tempo passa, mas a memória intensifica-se de forma anacrónica, permanecendo viva na matéria. O olhar torna-se, assim, uma forma de habitar aquilo que se vê.
No interior das suas telas, a intimidade do quotidiano expande-se para o observador. Sem hierarquia entre o vivo e o objeto, entre o visível e o relembrado, tudo coexiste num mesmo campo de respiração.
Esse instante não alimenta um fim, uma função, mas sim a memória nascente que permeia a convivência dos corpos no mundo: poiesis material que se expressa no tempo antropológico do corpo-casa-pintura.
A exposição Caos com Carinho pode ser visitada na Galeria Belard até dia 15 de novembro de 2025.
[1] Ursula K. Le Guin. A Ficção como Cesta: Uma teoria e outros Textos. Dois Dias edições, 2022 (1986 ed. Original)
[2] Byung-Chul Han, O Aroma do Tempo. Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora. Relógio d’Água Editores, 2016 (2009 ed. Original)