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Caos com Carinho, de Mariana Malheiro
DATA
03 Nov 2025
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AUTOR
Margarida Alves
Num espaço povoado por livros, objectos, tecidos, flores, presenças partilhadas, a artista cria uma casa-mundo.
A obra habita o lugar, assim como o lugar habita a obra, e é o corpo sempre nascente, a sua natureza naturante, que nos oferece as pistas que humanizam.
Relembro-me de um texto de Ursula K. Le Guin, The Carrier Bag Theory of Fiction (1986) [1], e imagino como este livro poderia habitar a obra de Mariana, nutrindo-a entre os seus livros-pinturas, num movimento em suspenso que se cria, creio, a partir da memória afetiva que penetra a realidade. Em Le Guin, ao invés do mito do herói, a narrativa tece-se em torno do subtil, dos momentos em que conseguimos ancorar ao corpo a cesta que guarda as sementes, partilhá-las, alimentar e escutar um amigo, retirar um espinho, limpar uma ferida. O fim não consiste em vencer o animal selvagem, conquistar territórios, poder ou nome, associá-los a um herói, mas sim, dissolver a própria ideia de fim e assumir o processo, as pequenas ações das vidas que se nutrem mutuamente, como o princípio em devir. 
Esta prática do cuidar manifesta-se, sobretudo, na intimidade.
A simbólica nascente dos gestos perdura através dos afectos e a casa-pintura respira, reverbera o tempo vivido.
Diz-nos Byung-Chul Han que a crise temporal apenas “será superada no momento em que a vita activa, em plena crise, acolha de novo no seu interior a vita contemplativa” [2], um Belo que se desvela no exercício do recolhimento temporal que persiste através do vínculo emocional, da relação de proximidade que faz com que as coisas sejam reais.
Neste sentido, a pintura da Mariana é uma prática que se opõe à rapidez e dispersão dos acontecimentos. Entre as camadas de tinta a óleo, há o exercício de espera, o processo de secagem que confere ao tempo espessura e duração, como uma memória que emerge subtilmente. O tempo passa, mas a memória intensifica-se de forma anacrónica, permanecendo viva na matéria. O olhar torna-se, assim, uma forma de habitar aquilo que se vê.
No interior das suas telas, a intimidade do quotidiano expande-se para o observador. Sem hierarquia entre o vivo e o objeto, entre o visível e o relembrado, tudo coexiste num mesmo campo de respiração.
Esse instante não alimenta um fim, uma função, mas sim a memória nascente que permeia a convivência dos corpos no mundo: poiesis material que se expressa no tempo antropológico do corpo-casa-pintura.
A exposição Caos com Carinho pode ser visitada na Galeria Belard até dia 15 de novembro de 2025.


[1] Ursula K. Le Guin. A Ficção como Cesta: Uma teoria e outros Textos. Dois Dias edições, 2022 (1986 ed. Original)
[2] Byung-Chul Han, O Aroma do Tempo. Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora. Relógio d’Água Editores, 2016 (2009 ed. Original)
BIOGRAFIA
Margarida Alves (Lisboa, 1983). Artista, doutoranda em Belas Artes (FBAUL). Investigadora bolseira pela Universidade de Lisboa. Licenciada em Escultura (FBAUL, 2012), mestre em Arte e Ciência do Vidro (FCTUNL & FBAUL, 2015), licenciada em Engenharia Civil (FCTUNL, 2005). É artista residente no colectivo Atelier Concorde. Colabora com artistas nacionais e estrangeiros. A sua obra tem um carácter interdisciplinar e incide sobre temas associados à origem, alteridade, construções históricas, científicas e filosóficas da realidade.
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