Assumindo-se como espaço de criação, preservação, investigação e divulgação da arte contemporânea, o Centro de Arte Alberto Carneiro (CAAC), em Santo Tirso, acolhe a exposição Portelos, cancelas e biqueiros[1], do artista plástico Samuel Silva (1983).
Ao entrarmos na primeira sala dedicada à mostra, uma sensação de acolhimento invade-nos, potenciada pela instalação efémera site specific Chão (último estrato), 2023, que numa fusão com o espaço arquitetónico que a recebe, impele-nos ao seu encontro. Grandiosa e poética, a instalação estende-se infinitamente pelo chão, ocupando-o como uma paisagem dominada pela horizontalidade, emergindo-nos numa experiência performativa e intimista, através da qual desvendamos camadas que se intercetam dentro de uma lógica de sobreposições reais e metafóricas. O processo de recolha por parte do artista de sedimentos vegetais, animais e materias inorgânicas do Monte Padrão – reafirmando-o enquanto lugar do espírito e da memória- como forma de pensar a antiguidade, a nossa matriz e origem, concretizam-se – numa invasão ideológica da Land Art – na peça de chão minimal que somos convidados a contemplar e participar. Nesta sua proposta de pensar e transmitir o tempo, está inerente refletir sobre aquilo que nos define de uma forma mais profunda, não obstante o contraste e simplicidade das matérias através das quais o artista explora conceitos degeografia, temporalidade, ancestralidade e identidade. Investigando plasticamente noções de ocupação do território, transformação da paisagem e vestígios imateriais, Samuel Silva confronta-nos em Chão com fundamentos e testemunhos ancestrais, mergulhando-nos numa relação com o tempo que ultrapassa a contemporaneidade. É a espessura do tempo que o artista nos apresenta mediante a acumulação e estratificação de sedimentos; o tempo que, adquirindo profundidade, se expande num horizonte de mais de dois mil anos. Percorremos a instalação, qual palco de ação, calcando-a, tocando-a e integrando-a, numa experiência contemplativa e sensorial. As texturas, os cheiros e os sons à nossa passagem, ocupam e preenchem o chão da sala do CAAC numa fusão e diálogo entre exterior e interior, numa relação de intimidade entre o visitante e a natureza, enquanto território de experimentação revelador dos segredos da terra. A simplicidade da instalação contrasta com o poder evocativo da memória da terra que nos é dada pelos elementos vegetais, animais e geológicos, microcosmos que retratam a passagem do tempo e a sedimentação, como um eterno retorno. Folhas, cascas de árvore, terra, troncos e galhos, plantas de feto, fragmentos rochosos e também cerâmicos de tegulae romana, constituem testemunhos ancestrais e temporais que Monte Padrão[2] convoca, onde tudo se vai reformando, mas algo permanece. Arte, natureza e arqueologia cruzam-se em Chão (último estrato), cuja espessura histórica nos transporta num manancial de sensações vindas de todos os tempos através de uma memória que tem a idade do mundo[3]. É esse regresso à essência e ligação à terra mediante a compreensão da natureza a partir do corpo e dos sentidos, e o estabelecimento de um diálogo entre o mundo rural e o meio artístico, Natureza e a Arte, que Chão (último estrato) de Samuel Silva proporciona, numa aproximação à prática de Alberto Carneiro (1937-2017) cujas palavras, publicadas em Notas para um manifesto de uma arte ecológica, sobre os significantes da natureza – uma árvore, uma pedra, uma flor, a água, um punhado de terra – e a universalidade dos seus significados, nos acompanham à medida que contemplamos a instalação.
No mesmo espaço, em exibição nas paredes observamos conjuntos de desenhos em grafite e vieux chêne realizados por Samuel Silva há dez anos. Feitos de memória e inspirados em construções do homem no ambiente natural para delimitar um determinado território, os desenhos antecedem, como eco visual, o projeto fotográfico que nos é posteriormente revelado. Recorrendo ao mundo natural, geografias e territórios Samuel Silva evoca em Portelos, cancelas e biqueiros a intervenção humana na paisagem, em desenhos e fotografias reveladores – à semelhança de Alberto Carneiro – da sensibilidade do artista pelo valor estético do trabalhador rural que manifesta capacidade artística. Iniciado em 2013, o projeto fotográfico de pulsão arquivista apresenta mais de trezentas imagens sobre um conjunto de estruturas agrícolas, num desejo do artista em compreender estes pequenos gestos inventivos de pessoas mais simples (…) fotografar e tentar pensar a partir dessa criatividade[4]. Em diálogo com as obras de Alberto Carneiro, três diaporamas com uma seleção de diapositivos do arquivo de Samuel Silva, revelam-nos cancelas, portelos e biqueiros: construções inventivas e surpreendentes que, à entrada dos campos agrícolas, possuem um forte caráter plástico, transformando-as em esculturas involuntárias e originando situações poéticas. Evocando o interesse de Samuel pelas lógicas de reutilização de materiais e imprevisibilidade, as fotografias de estratagemas agrícolas (de propósito funcional e não estético) feitos a partir de elementos simples – paus, pedras, cordas, latas, arames – revelam combinações entre materiais, subtilezas construtivas e compositivas[5], assim como o olhar do artista sobre estas composições. Às fotografias de 2013, Samuel Silva acrescenta outras mais recentes que o conduziram num trabalho de campo e de experiência do lugar, ao revisitar os espaços fotografados entre Alturas do Barroso e Cabeceiras de Basto. Nestas imagens em que existe intervenção humana, mas há também uma espécie de fantasmagoria, somos confrontados com a suspensão do tempo no interior rural do Pais em que portelos, cancelas e biqueiros atuam como sismógrafos de uma economia/ecologia de sobrevivência típica destes lugares[6]. Concluímos mencionando a obra autónoma Lá de fora, muito cá de dentro, 2023, paisagem sonora da autoria de Samuel Silva e Fernando José Pereira que num momento pós-expositivo se propõe a reavivar a experiência da visita através da escuta.
A exposição, Portelos, Cancelas e Biqueiros de Samuel Silva, está patente no CAAC – Centro de Arte Alberto Carneiro até 15 de outubro.
[1] Inaugurada a 7 de julho a exposição estará patente no CAAC até ao dia 15 de outubro.
[2] Lugar de ocupação estratégica ao longo de milhares de anos – desde os primeiros povoamentos castrejos, passando pelas construções romanas até ao presente – Monte Padrão constitui uma das principais referências culturais e arqueológicas do concelho de Santo Tirso e do norte de Portugal.
[3] CARNEIRO, Alberto – Notas para um manifesto de uma arte ecológica. Originalmente publicado Revista de Artes Plásticas, Porto, n. 7, Outubro 1973, p. 6.
[4] Cit. da intervenção do artista durante a entrevista sobre a exposição Portelos, Cancelas e Biqueiros. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pGd4nWcrV7s.
[5] Folha de sala da exposição.
[6] Idem.