Abordando a arte como lugar de experimentação, a dupla canadiana apresenta-nos em Coimbra um corpo de trabalho que, explorando questões relacionadas com iluminação, teatralidade, memória e música, incorpora médiuns diversos – desenhos, poemas, instalações sonoras e multimédia, esculturas cinéticas - na criação de experiências sensoriais carregadas de emoções.
Ao longo da exposição, confrontamo-nos com a importância do diálogo que a dupla estabelece entre as suas obras e a arquitetura do espaço, envolvendo o espectador num jogo de descobertas constantes, numa procura por nexos e correlações. A este propósito e a partir de um dos capítulos da história do edifício deparamo-nos com a obra de entrada Curtain (1990-2024) que, estrategicamente posicionada, desenha na parede a sombra de um fogo ativo que recai sobre a roda dos enjeitados. Num ambiente escurecido, observamos a cortina de seda negra, sobre a qual incidem quatro luzes intermitentes e cujas sombras do fogo nos lançam num jogo de analogias com as vidas que tiverem início naquele espaço e a aflição coletiva perante a condição atual global. Do outro lado do longo e vazio corredor do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, o som do fogo e do crepitar das chamas acompanham-nos à medida que o percorremos, mergulhando-nos numa atmosfera de urgência e de inquietação, intensificada pelo ruído de sirenes e a projeção em loop de uma casa a arder. No limiar entre ficção e realidade, o caráter emocional e subjetivo do som e do espaço provocados pelo vídeo multissensorial House Burning (2001) convocam no espectador uma sensação de estranheza e de instabilidade que voltamos a reencontrar nas instalações a solo de George Bures Miller: Imbalance.1 (Wings), 1994 e Imbalance.6 (Jump), 1998. Pertencentes à série Simple Experiments in Aerodynamics, ambas as esculturas cinéticas jogam com noções de gravidade, de (des)equilíbrio e com a perceção do espectador, numa exploração do experiencial e do ilusório, entre o caráter estático dos objetos e a motilidade das imagens apresentadas.
Ocupando uma das salas do Mosteiro, transcendendo o som, o espaço e o tempo, a instalação The Infinity Machine (2015), composta por mais de uma centena de espelhos que se estendem do teto até ao chão, impõe-se pela sua dimensão visual. Observamos na escuridão a composição cintilante de espelhos antigos que, fixos a uma estrutura giratória, orbitam no espaço projetando reflexos infinitos ao som de gravações do sistema solar. Acompanhados pela sequência de luzes em constante mudança e pela dança de sombras que se desenham, as múltiplas camadas que compõem The Infinity Machine vão-se desvendado entre a beleza e o mistério, numa obra que, ao transportar-nos para a dimensão imersiva do universo, nos lança numa reflexão sobre imigração e identidade, memória e espaço, sociedade e tecnologia.
O escape intimista a outros e novos mundos, prossegue no espaço do antigo refeitório do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, ao mergulharmos na experiência imersiva e performática proporcionada pela instalação sonora The Forty Part Motet, 2001. Composta por 40 colunas, dispostas em círculo e ao redor de dois bancos que nos convidam a sentar, apreciamos e ouvimos a composição coral renascentista de Thomas Tallis, Spem in Alium. Transformada num coro virtual eletrónico, cada coluna reproduz uma voz diferente numa experiência sonora, emocional e íntima que convida à participação do espectador que, ao circular pelo espaço e ao interagir com a obra de arquitetura sonora, pode criar a sua própria composição num exercício de comunhão, transcendentalidade e renascimento.
O potencial performático na interação do público com as obras, num processo de descoberta e de edição do que se vê e ouve, assim como a perceção do nosso corpo enquanto ferramenta da experiência artística, são uma constante ao longo da exposição. A este propósito destacamos The Cabinet of Curiousness (2010) instalação sonora constituída por um simples armário de madeira cujas 20 gavetas - num jogo simultâneo de esconder e revelar - somos convidados a abrir. Entre músicas e gravações do casal, discursos de Churchill, ou o registo de um soldado da II Guerra Mundial a cantar, provenientes dos arquivos pessoais dos artistas, cada gaveta emite um áudio distinto que pode ser ouvido de forma individual ou simultânea, no que os artistas referem como um contraste entre o sistema obsoleto de catalogação de pedaços individuais de informação e a tendência atual para nos inundarmos com informação excessiva.
O interesse pelo som enquanto catalisador de memórias, ao permitir que cada espetador aceda às suas próprias recordações e emoções, prossegue em obras como To Touch (1993) de Janett Cardiff e The Instrument of Troubled Dreams (2018). Na primeira, no centro de uma sala escurecida e silenciosa, uma mesa antiga de carpinteiro é ativada através dos nossos gestos e movimentos sobre a sua superfície, reproduzindo-se sons diferentes como o afiar de uma faca, diálogos de filmes antigos ou um telefone a tocar. São sonoridades que se libertam como memórias à medida que as sombras das nossas mãos sobrevoam o tampo de madeira, e que, ao ativarem o nosso subconsciente emocional, potenciam a criação de novas recordações. Experiência semelhante é-nos proporcionada por The Instrument of Troubled Dreams, em que cada tecla de um mellotron nos revela um som diferente — desde a voz de Cardiff, rezas de freiras nepalesas ou efeitos sonoros como vento, cães a ladrar, o cair da chuva ou gatos a lutar - podendo o visitante desenhar a sua própria paisagem sonora numa experiência de ativação de memória visual que preenche o espaço.
Estendendo-se a exposição à cisterna do Mosteiro, descemos ao antigo reservatório de água onde, num ambiente onírico e Lynchiano, nos deparamos com a obra Blue Hawaii Bar (2007). Acompanhados por Hawaiian wedding song e Blue velvet, caminhamos no escuro ao longo do piso de pedra que, coberto por água, reflete as luzes coloridas de um bar havaiano. Sentados ao balcão do bar, deixamo-nos transportar para outros tempos e lugares, viajamos entre a nostalgia de recordações de férias e amores passados e sorrimos perante o humor e ambiente nonsense criado pelos artistas.
A encerrar o nosso percurso pela Fábrica das Sombras, somos guiados no exterior pelo som de uma voz, cuja contagem sussurrada - de 1 até 1000 – seguimos, como num jogo de infância, por um caminho entre arbustos que nos leva a uma área remota onde duas cadeiras vazias e um altifalante nos relembram da nossa condição cronológica e da sua inevitabilidade.
A exposição Fábrica das Sombras pode ser visitada até dia 6 de julho.