Mergulhando-nos num diálogo entre sombra/luz; claro/escuro; visível/invisível, a mostra impõe-se, desde o primeiro momento, pela articulação entre a negritude de formas e objetos produzido pelo artista com a claridade do espaço expositivo, acentuada - num desafio à arquitetura - pela carpete bege que se estende pelo chão da galeria, instaurando um jogo de sombras, provocações e confrontos.
A escuridão, a que Hugo Canoilas se oferece com empatia enquanto lugar de liberdade artística que, do ponto de vista do pensamento, possibilita reescritas e releituras, traduz-se numa exposição cujas obras - sobretudo cerâmicas - traduzem um elogio à sombra e ao modo como estas contêm as propriedades dos objetos – físicas ou não - numa relação com o negativo dos mesmos representado por decalque.
Enraizada numa forte componente teórica e reflexiva, a prática artística de Hugo Canoilas revela-nos, com implicações diversas, o fascínio pela escuridão e pela sombra enquanto lugares que possibilitam novas formas cognitivas e sensíveis de nos relacionarmos e percecionarmos o mundo, bem como uma consciência aguda do próprio corpo. A este propósito relembramos projetos recentes do artista: A Gruta (Galeria Quadrado Azul, 2019-23) local escuro, ideal para novas cosmogonias se realizarem; Moldada na Escuridão (Museu Calouste Gulbenkian, 2021) instalação cuja escuridão dramatizava o fundo dos oceanos, o seu potencial de assombro e de desconhecido, numa subalternização da visão e emancipação dos outros sentidos; ou a instalação pictórica Phantasmagoria, (CAV, 2023) que, realçada por uma luz âmbar e a impossibilidade de ver o todo pelo espectador, criava a cada passo diferentes coreografias e uma visão de maravilhamento.
À semelhança das exposições mencionadas, cujas obras e escuridão dos espaços requeriam uma ativação por parte do público, um caminhar em torno e sobre as peças, num processo de descoberta e de edição do que se vê, também em Umbra a materialidade, técnicas e cores dos trabalhos em exibição implicam a nossa psique na criação e estabelecimento de relações. O potencial performático na interação do público com as obras, bem como a perceção inconsciente do nosso corpo enquanto ferramenta da experiência artística, revelam-se intencionais por parte de Canoilas à medida que caminhamos sobre a suavidade da alcatifa bege e nos curvamos para observar as peças de chão cuja negritude se estende pela superfície.
Resultante de uma residência artística em Viseu, organizada pela galeria VNBM, de dezembro de 2024 a fevereiro de 2025, propondo uma articulação entre elementos culturais da região com a sua prática, Umbra apresenta-nos um conjunto intervenções no espaço da galeria, desenhos e peças cerâmicas desenvolvidos a partir de objetos tradicionais, inscrições dos períodos megalítico ao medieval e detalhes de pinturas renascentistas de Vasco Fernandes (1475-1542) numa manifestação heterogénea entre o erudito e popular, o social e o artístico que congrega as várias formas numa mimesis entre o ethos e a praxis do autor. Realizada em três períodos diferentes, ao longo da residência foram efetuadas visitas de campo e de prospeção de terreno, que, num exercício de desbravamento, descoberta e recoleção de materiais, permitiram ao artista absorver conhecimentos sobre manifestações culturais, históricas, vernaculares e populares do território1. Entre visitas culturais a museus - Museu Grão Vasco e Museu Keil do Amaral - contacto com artistas e artesãos locais, caminhadas pelas paisagens da Serra da Arada, Serrazes e exploração de pontos megalíticos, o artista absorveu estímulos, sensações e experiências que se materializam no corpo das obras em exibição.
Sombras recolhidas pelo artista, detalhes de uma pintura do Museu Grão Vasco, objetos do Museu Keil do Amaral e do Esterhazy Shatzkammer no Castelo de Forchstenstein, na Baixa Áustria, são alguns dos motivos que integram os novos desenhos do artista num exercício de memória, reprodução, colagem e criação de novas relações. As cerâmicas em exibição tratam-se de negativos de objetos encontrados em inscrições nas ruas do centro histórico medieval de Viseu, em monumentos megalíticos da região e numa pequena coleção particular de objetos. Concebidas em barro preto tradicional de Molelos, com a colaboração de dois Oleiros da região, as peças revelam-nos memórias sedimentadas, cicatrizes resultantes da modelação do material à matriz, num processo de contacto com o real que produz marcas que contam histórias. O olhar atento de Hugo Canoilas e a observação cirúrgica do quotidiano atingem o seu pleno num corpo de trabalho revelador de camadas, através do qual nos confere um novo olhar que mobiliza os nossos sentidos.
O conceito de negativo presente na exposição, inspirado em antigas caixas de pele e madeira para o transporte de objetos de valor que o artista encontrou na Fundação Eszterhazy, por vezes vazias por motivos de pilhagem, torna-se a memória desses objetos numa coleção. A representação em negativo, aferida pelo filósofo francês Lyotard (1924-1998) em The Sublime and the Avant Gard sobre as pinturas de Barnett Newman (1905-1970), é reforçada por Hugo Canoilas com a frase de Willem de Kooning: Para representar uma cadeira, é preciso pintar o espaço sob ela. Numa evocação do ensaio de 1933 de Jun’ichirō Tanizaki (1886-1965) Elogio da Sombra, que explora as diferenças entre a estética ocidental e japonesa, valorizando a penumbra, os jogos de claro-escuro, afirmando que a beleza perde a sua existência se os efeitos da sombra forem removidos, os objetos negros que compõem a mostra refletem também as ideias do poeta, ensaísta e crítico literário italiano Sergio Solmi (1899-1981) na defesa da confluência de zonas de sombra para que as coisas continuem vivas, e a dimensão política da invisibilidade na possibilidade de ser, presente no livro Raving (2023) da escritora e académica australiana McKenzie Wark (1961).
Propondo uma reflexão sobre a memória, o tempo, a materialidade da arte e acreditando na capacidade de ver e olhar do espectador sobra a mesma, em Umbra, Hugo Canoilas propõe partilhar e deixar a obra ser territorializada pela comunidade, se possível, oferecer algo para uma obra futura de outrem e enriquecer a história das exposições da galeria, que implica tornar aquele espaço vivo.2
A exposição está patente na Galeria Venha a Nós a Boa Morte, em Viseu, até dia 13 de junho.
1 CANOILAS, Hugo – UMBRA- Residência Artística e Exposição. Fevereiro de 2025.
2Idem. Ibidem.