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There’s always room for cake
DATA
17 Mai 2024
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AUTOR
Maria Inês Augusto
A amizade dança feito um mensageiro à volta da terra anunciando a todos nós o despertar para a felicidade. Foi na manhã de uma quinta-feira que me encontrei com a Bárbara Faden e a Rita Paisana, na galeria Salto, para conversarmos sobre Suspiro, a mais recente exposição das duas artistas, que contou com a curadoria da Ana Grebler.

A amizade dança feito um mensageiro à volta da terra anunciando a todos nós o despertar para a felicidade[1].

Foi na manhã de uma quinta-feira que me encontrei com a Bárbara Faden e a Rita Paisana, na galeria Salto, para conversarmos sobre Suspiro, a mais recente exposição das duas artistas, que contou com a curadoria da Ana Grebler. Importa, antes de aprofundar os temas que esta mostra reclama – e aqui imprimo-me o direito de acrescentar que me deram especial prazer pensar – adiantar que Suspiro é uma exposição-festa-de-aniversário dos 7 (quase 8) anos de amizade entre as artistas.

Conheceram-se na noite em que souberam que ficariam na mesma turma na Faculdade de Belas Artes e, durante estes anos, desenvolveram a relação que agora urgia celebrar. Suspiro é a primeira exposição que concretizam juntas. A ideia e vontade de realizá-la surgiu no verão do ano passado e é, desde lá, que têm vindo a criar, sempre numa premissa de complementaridade, um conjunto de obras que nasce do universo que partilham. A exposição é resultado de um trabalho e investigação artística conjunta, que explora símbolos, dilemas e referências, mas é também um imaginário, ao mesmo tempo real e místico, testemunho de cuidados individuais e recíprocos entre as artistas. Cada obra é uma espécie de talismã forjado neste universo intimista, fruto da flutuação entre estados de “paixão e incómodo, tempestade e calmaria”[2].

O amor e a amizade, enquanto sinónimos de relações amistosas, tiveram o seu início assim que o Homem, sob impulsos afetivos ou de cordialidade, começou a se carecer[3]. É esperada, na amizade, uma noção e prática de reciprocidade e zelo pelo outro, mas também um conhecimento profundo de si mesmo. O estabelecimento de limites individuais, a compreensão mútua, a autenticidade são necessários numa amizade positiva e significativa, e é nesta esfera de bem-querer, de fortificação de ânimo, acolhimento e compreensão que as artistas se têm movido. Sempre num exercício de soma. Expandem e extravasam a cumplicidade que têm na própria relação para o processo criativo, nunca subtraindo, mas acrescentando; nunca subjugando, mas complementando.

O elo que é celebrado em Suspiro corresponde à transição entre a adolescência e a vida adulta, sendo por isso marcado por impulsos do desenvolvimento mental, emocional e social. É um lugar onde Bárbara Faden e Rita Paisana partilham experiências e inquietudes, mas é também um espaço que se distende, onde crescem, juntas e individualmente. Um espaço que se transforma e se move entre o sonho, a inocência, a ingenuidade e o luto de qualquer coisa que, com o tempo, se transforma.

Quando nos posicionamos no centro da sala, é clara a individualidade nas diferentes produções, mas é clara também a conexão e a forma como as obras dialogam através do movimento, de uma atmosfera que se estende do universo natural, das plantas, para uma dimensão simbólica, mística, delicada, de laços e contas. Trata-se de um caráter intimista e feminino, não tratado de forma tradicional, mas em tom quase irónico, subversivo – acrescenta Rita Paisana. Com processos de trabalho distintos, cada uma contribui com a sua abordagem distintiva. São perspetivas de um lugar comum que criam uma narrativa coesa, uma experiência imersiva, visual e conceptual. Suspiro é uma espécie de diário que reflete a sensibilidade poética partilhada, o espírito de experimentação que ambas exploraram. Os anseios, as emoções, os desejos e os fragmentos de momentos-amuletos que fazem parte da memória coletiva das artistas criam um corpo de trabalho com expressão pessoal, embora em evidente diálogo, que se mantém refratário em relação ao tempo.

Rita Paisana interessa-se pela acumulação, pela escavação e pela queda. Esclarece que tem desenvolvido um trabalho de investigação em torno da transformação por meio da explosão e do derretimento – e como lhe interessa, neste momento, o convívio entre o delicado (através da presença de elementos como colares, laços, contas) e o bruto (consequente da forma como manipula a matéria). Exemplo disso é Silver tongue (díptico).

Bárbara Faden, por outro lado, explora, sobretudo nesta exposição, uma diferente paleta de cores. Trabalha geralmente a partir do seu arquivo de imagens, fragmentos ou excertos, e, aqui, traz à tona motivos vegetalistas e florais, danças, sussurros, estrelas e aproximações (Coração-dragão). Fixa coreografias naturais, transportando o que é de melhor atribuído ao Homem, como o cuidado e carinho, para o mundo vegetal e animal (insetos). Cria narrativas através do movimento e da repetição (Fireflies blinking on and off e O desejo da laranja).

Juntas, criam um ambiente intenso, íntimo, de sonho e de nostalgia, sugerido também pela Heart Connection, instalação com fruteiros de pé e taças em vidro lapidado e moldado com suspiros (os que restam), aludindo a um ambiente kitsch e familiar ao mesmo tempo. Há uma força dinâmica que inspira e desafia através dos diferentes meios que nascem das imagens, referências visuais e literárias no “universo sagrado e criado em conjunto, que é manifestado em Suspiro”.[4]

Na inauguração, sopraram-se as sete velas. Um bolo, que fazia parte da instalação I see, your love is teaching, foi partilhado em ato de celebração e festa. Contudo, e talvez influenciada pela frase de Grebler – “[…] raízes emergem e se multiplicam com o passar do tempo, tornando-se cada vez mais complexas, enquanto outros laços são levados pelo vento […]”e por Mário de Andrade, no seu Macunaíma[5] – livro que estou a ler à data e que me tem feito refletir sobre a inocência e a ingenuidade –, vejo Suspiro, também, como uma exposição-festa-de-despedida de disposições que se alternam e alteram, que são levadas pelo tempo.

A inocência e a ingenuidade são traços comuns de quem ainda não foi exposto aos aspetos mais complexos e muitas vezes sombrios da vida. Podem ser vistas como uma virtude, pois estão relacionadas com sinceridade, confiança e com a capacidade de ver o mundo de forma simples – mas pode também, de certa forma, ser impeditiva. Nietzsche chega mesmo a considerar que a inocência pode ser uma barreira para o desenvolvimento humano genuíno e uma forma de escapismo da realidade. Durante a nossa conversa, as artistas falaram-me sobre como foi preciso tempo, e consequentemente maturidade, para que a relação de amizade que mantêm se materializasse nesta exposição. Assente numa base emocional explosiva e privada, a ligação que cultivam deu lugar a um espaço de trabalho estruturado, capaz de processar emoções, pulsões e, talvez de forma menos consciente, as dores de crescimento e o seu consequente luto da doçura adolescente que se metamorfoseia. Bárbara Faden relembra o facto de não sermos capazes de preservar a inocência e a ingenuidade, sendo impossível, uma vez perdida, ser resgatada – mas que pode ser transformada. Termino com a frase da atriz Beatriz Batarda, que Bárbara Faden ouviu e repetiu: “o objectivo é conseguir transformar informação em amorosidade”. Suspiro celebra a amizade, as relações, mas também o poder transformativo e as infinitas perspetivas possíveis da realidade.

A exposição estará patente até dia 30 de maio, e as visitas podem ser agendadas através do email saltolisboa@gmail.com.

 

[1] Sentenças Vaticanas, Epicuro, 52 (estas oitenta e uma Sentenças de Epicuro foram descobertas em 1888 por Karl Wotke num manuscrito da biblioteca do Vaticano).
[2] Ana Grebler na folha de sala que acompanha a exposição.
[3] SPINELLI, M. Epicuro e o tema da amizade: a philía vinculada ao érôs da tradição e ao êthos cívico da pólis. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), [S. l.], v. 18, n. 29, p. 05–35, 2011.
[4] Ana Grebler na folha de sala.
[5] ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Rio de Janeiro: Agir, 2007.

BIOGRAFIA
Maria Inês Augusto, 34 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) na área dos Serviços Educativos como estagiária e trabalhou, durante 9 anos, no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada durante várias edições e colaborou, em 2023 com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. Desenvolve, actualmente, um projecto de Art Advisory e curadoria, colabora com o Teatro do Vestido em assistência de produção e tem vindo a produzir diferentes tipos de texto.
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