Quando estive na Bélgica pela primeira vez, em 2017, passei dez dias em Liège – cidade industrial nas margens do rio Meuse – e apenas um par de horas em Bruxelas: o suficiente para passar pelo Manneken Pis, pela Catedral de São Miguel e Santa Gudula e apanhar o meu voo de regresso a casa. Desta vez, viajei até Bruxelas para a 41ª edição da Art Brussels, que decorreu na Brussels Expo Hall de 24 a 27 de abril. Vi a cidade nos intervalos de um programa de imprensa preenchido, pelas janelas ornamentadas num estilo art nouveau, mas, sobretudo, através das conversas nos cafés, das exposições e das folhas de sala que fui acumulando.
Nele Verhaeren – diretora da Art Brussels – esclareceu desde cedo o principal objetivo desta edição: estabelecer uma relação de proximidade com a cidade e as suas principais instituições culturais, afirmando Bruxelas não apenas como um centro político, mas também como uma capital cultural e artística vibrante. Talvez por isso o programa tenha começado precisamente com uma visita a algumas das mais importantes galerias e coleções de arte privadas da cidade.
Partimos do centro histórico para lxelles, uma comuna marcada pela presença de estudantes, artistas e intelectuais, com dezenas de galerias a poucos passos de distância. Entre elas, destaco a QG Gallery com a exposição High End and Above, de Frank Gerritz, onde as telas desconstruídas questionam os limites da superfície pictórica e, em última análise, o intervalo ténue entre a pintura e a escultura. Relembro também a galeria Xavier Hufkens que, à data em que escrevo, acolhe as exposições Mysterious Leap, de Matt Connors, e And there is a place you will not be able to return, de Nathanaëlle Herbelin. Resultado de um estudo sobre os mecanismos de tradução entre a observação e a representação, Mysterious Leap apresenta uma série de pinturas de pequena e grande escala. São trabalhos que reúnem as cores, as formas e as texturas que pontuam o universo visual do artista; composições fragmentadas que – embora visualmente distintas – dialogam entre si, encetando um jogo de contágio rítmico. Em And there is a place you will not be able to return, a abstração de Matt Connors dá lugar à figuração crua e melancólica de Nathanaëlle Herbelin. Através de um conjunto de retratos e pinturas de interior, envoltas numa atmosfera sóbria, a artista recupera alguns momentos de intimidade e os rituais que, na religião judaica, assinalam o processo de luto. Enquanto escrevo, revejo uma vez mais Dinner with Hard-Boiled Eggs, uma representação da Se’udat Havra’ah, a refeição de condolências que sucede a um enterro. Lembro as pinceladas vigorosas, as figuras quase grotescas e os ovos cozidos sobre a mesa – símbolo do ciclo da vida e da renovação. Ao mesmo tempo, reflito sobre a intimidade de partilhar uma refeição e os pequenos gestos de resistência coletiva. Aqui, a história individual surge indissociável de uma história coletiva, marcada pela violência, pela tensão política e por um profundo sentimento de incerteza.
Estas preocupações políticas parecem contaminar o panorama artístico da cidade. Reencontro-as no BOZAR – Centre for Visual Arts, com as exposições Familiar Strangers – The Eastern Europeans from a Polish Perspective e Khorós, de Berlinde De Bruyckere, e, mais tarde, na Art Brussels. Afinal, se, por um lado, as feiras são um espaço destinado ao funcionamento do mercado, por outro, são também um lugar de encontro, onde o pensamento crítico – por via da arte – poderá alcançar uma maior visibilidade.
Em 2025, passaram pela Art Brussels mais de vinte mil visitantes. No topo do Heysel Parque, reuniram-se 165 galerias de 35 países diferentes, mais de 30% das quais regressaram de edições anteriores. Aos habituais nomes consagrados, somaram-se artistas e galerias emergentes e uma série de projetos com uma forte componente curatorial. Destaco a inauguração do programa The Screen; onde seis galerias apresentaram um vídeo de um dos seus artistas, sublinhando a significância dos time-based media na arte contemporânea; e o projeto de Céline Condorelli, uma instalação site-specific que pretende reimaginar a entrada da feira. Representada pela Galeria Vera Cortês, a artista desenvolveu uma estrutura semelhante à cortina de um teatro, sugerindo que, ao entrarmos na Art Brussels, pijá um território encenado.
Como uma peça de teatro, a feira encena e produz uma narrativa sobre a produção artística contemporânea. Durante dois dias, deambulei pelos seus corredores. Eram brancos, quase esterilizados, e contrastavam com as superfícies de betão e as vigas de aço expostas da Brussels Expo Hall. A dimensão avassaladora do espaço levou-me a questionar: como escrever sobre esta enorme peça de teatro? Recupero o livro que me acompanhou no avião para Bruxelas: Técnicas do Observador, de Jonathan Crary – uma leitura que se diz ser incontornável, mas que, de algum modo, tinha adiado até então. O autor introduz o quarto capítulo do livro com uma reflexão sobre as imagens residuais da retina, um fenómeno ótico que descreve a presença de sensação na ausência de um estímulo. Aproprio-me inadvertidamente deste conceito e aplico-o ao exercício da escrita. Depois da minha visita à Art Brussels, sento-me num café perto da Av. Louise e fecho os olhos – como se recuperasse de uma espécie de overdose visual. E, então, anoto algumas das imagens-relâmpago que irrompem com a mesma brutalidade com que, mais tarde, se desvanecem:
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(1) Os corpos mutantes de Salomé Chatriot, representada pela galeria berlinense OFFICE IMPART. A respiração e o batimento cardíaco da artista informam uma base de dados, posteriormente transformada nesta escultura eletrónica. Vejo uma anatomia especulativa, onde o erotismo da carne surge entrelaçado com o brilho metálico do aço. Corpo-máquina. Máquina-corpo. Uma reconciliação inquietante entre o íntimo e o artificial, o orgânico e digital, entre o corpo humano e o que – quem sabe – viremos a ser.
(2) Kafka’s boat (1990), de Wolf Vostell, no stand da galeria EAST: um barco militar da Segunda Guerra Mundial, com alguns corpos amontoados e, entre eles, um pequeno televisor. Esta obra – tão sensível quanto brutal – é uma referência ao primeiro conflito militar acompanhado pela televisão. Desde então, a violência tornou-se banal e a morte passou a fazer-nos companhia às refeições. Kafka’s boat não é uma peça recente, mas parece refletir os tempos contemporâneos. A seu lado, Jesus with a TV heart (1995), que opera uma rotura com a iconografia sagrada. O coração de Jesus foi substituído por um ecrã cuja imagem se encontra distorcida pela interferência estática. Resta um espaço vazio no seu peito. Será que o amor ao próximo é já mediado pelos ecrãs, condicionado por uma lógica de visibilidade? Será que também Jesus – símbolo da religião cristã – assiste à violência por detrás de um ecrã, ora impotente, ora profundamente desinteressado?
(3) I WISH I HAD A TIME MACHINE – as palavras que ocupam a exposição Time is not a line, de Karo Kuchar, no espaço da galeria SUPPAN. Vejo-as gravitar desordenadamente; formar novas constelações e dissolverem-se como matéria de sonho. HAD – MACHINE – TIME – I – WISH / MACHINE – WISH – I – HAD – TIME. Interessada na desconstrução da linearidade do tempo, a artista propõe um universo onírico, onde poderemos, enfim, escapar ao presente que nos aprisiona. As suas peças, criadas em tecido com um enchimento que lhes confere algum volume, são um portal para uma outra dimensão temporal. Lembram nuvens ou almofadas – afinal, esta suspensão temporal parece depender simultaneamente do voo e do son(h)o. Depois, imagino um corpo que, num salto para o vazio, se lança sobre o portal e desaparece. Estará já do outro lado. Talvez envie um sinal de fumo, um fax para o seu antigo escritório. Deste lado, as palavras ecoam uma vez mais. Lê-se: THIS TIME, I FOUND A TIME MACHINE.
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São impressões sucintas, fugidias – um resumo possível da minha curta estadia em Bruxelas: suficiente para concluir que, em breve, terei de regressar.
A Umbigo viajou até Bruxelas a convite da Art Brussels.