Conversei com o Pedro no seu atelier sobre esta exposição e sobre o que tem vindo a desenvolver. O entusiasmo com o curso de marcenaria que frequenta é evidente, e torna-se clara a forma como essa prática contagia e atravessa Vernissage. A exposição, patente na Balcony, simboliza precisamente, a meu ver, uma fase de preparação, de suspensão controlada, onde o fazer técnico e o gesto artístico ainda estão em aberto.
Trata-se de um conjunto de obras-exercício que parecem resistir, de alguma forma, à conclusão: molduras ainda por dourar, representações de versos de telas, suportes ainda com vestígios de outro uso... Há uma suspensão do acabamento que, aqui, é método e decisão. Pedro o Novo sabe onde está, e sabe que não quer ainda fechar. Encontra-se num momento de influência de várias aprendizagens e conhecimento para, no fim, praticar a contenção. Gestos rigorosos, composições quase cirúrgicas da técnica (Marchetaria, 2025)... Cada entalhe, cada moldura, cada reaproveitamento e revivalismo traz consigo a marca de uma ética do ofício. Vernissage é sobre saber fazer.
A procura por autonomia por parte do artista transfere-se, com naturalidade, para o que executa. A moldura, aqui, deixa de funcionar como um remate ou contorno e transforma-se num verdadeiro território de investigação. Há frisos que expandem os temas, molduras que emolduram outras molduras, ferramentas que se integram no próprio enunciado visual, tornando-se parte da linguagem da obra. Tudo na exposição remete, de algum modo, para uma disciplina da mão — para uma organização do desejo de dominar a forma. Mas essa procura pelo rigor convive com um entusiasmo lúdico, com uma frescura inaugural que confere leveza ao método, como se tudo fosse ainda uma lição em curso, experimentos de várias disciplinas.
No primeiro piso, encontramos representações de elementos que poderiam ser troféus alusivos à Pintura ou ícones, obras que são versos de telas com pinceladas inscritas que formam uma espécie de trama meticulosa, obras que surgem em proximidade e em diálogo como Geração de ouro (Primitivs Portugueses, 2025) e ESCOLA ANTIGA (depois de Bruegel), 2025. Nestas últimas desenrolam-se duas narrativas visuais distintas com títulos que parecem convocar não só tradições estilísticas, mas também a memória de um outro tempo, lembrando a história da arte como um campo de transmissão e herança. Em ESCOLA ANTIGA (depois de Bruegel) há uma ficção pedagógica deliberada: “Bruegel, o Velho, a passar conhecimento ao Pedro, o Novo”, diz o artista. A referência à transmissão de saber, este aceno que Pedro faz através de um jogo dialógico entre o Velho e o Novo, inscreve-se no universo de toda a exposição. Atravessa-a e, diria até, atravessa também toda a investigação artística que O Novo tem levado a cabo.
Também neste piso, uma tela de grandes dimensões com a representação de uma espécie de kit de iniciação às práticas artísticas: uma série de ferramentas, estruturas e suportes cuidadosamente dispostos, como se aguardassem o início de qualquer coisa por construir. NEW STUDIO ORDER (2025) remete-nos, como tantos outros elementos em Vernissage, para um começo, um ponto de partida material. A propósito desta obra, Pedro fala-me sobre como não se limpa uma ferramenta antes de a utilizar. Primeiro trabalha-se, depois limpa-se e arruma-se. A lógica é simples, mas profundamente reveladora de uma atitude perante a prática. Esse método está também presente no seu ateliê, onde um caos aparente esconde uma disciplina estrutural, uma ordem paciente que emerge da própria investigação. Esse equilíbrio entre a procura pelo rigor e liberdade perpassa toda a sua produção artística e, nesta exposição, traduz-se num jogo de contenções sucessivas que não inibem, mas que sustentam. O gesto de estruturar é aqui também o gesto de dar espaço ao que está por vir.
Há também, em Vernissage, a questão da (re)descoberta das artes decorativas, de uma revalorização do decorativo. Mas, ao contrário do que é sugerido na folha de sala, não me parece que O Novo o faça com ironia — vejo, antes, uma vontade autêntica de dar continuidade e explorar uma genealogia visual que vai perdendo força. Um revivalismo sem nostalgia através de gestos que recuperam, iludem e conservam. É uma forma de manter vivo o gosto, o detalhe, o ornamento, que pode ser mais ou menos familiar para quem visita — para mim memórias e referências à história da arte.
Com uma gramática de ornamentos própria — exemplo a quadrícula axadrezada que remata o Primeiro Descanso (2025), exposta no piso inferior, o artista cria uma linguagem visual que se desdobra sobre si mesma: plantas que crescem em quadrados, árvores que dão umas pequenas esferas — que O Novo me esclarece serem pérolas de ouro — acantos rematados por um friso de acantos, emoldurados com acantos gravados (Plantação de Acantos, 2024), são motivos que resgatam um tempo que aqui é cultivado, que cresce por dentro da pintura, que investiga a origem das coisas, que inicia ciclos.
Importa também referir o carmim nas paredes da galeria. Foi, segundo Pedro, uma forma de preparar a entrada das pinturas. E prepara de facto — cria um fundo quente, um abraço cromático que faz lembrar as salas dos museus de arte antiga, espaços onde a pintura é recebida com solenidade. Há aqui também uma museografia do gesto, uma vontade de expor com a mesma reverência com que se expõe um altar, um relicário, um fragmento ou vestígio de um tempo antigo (Ícon, 2025).
A exposição inteira é habitada por uma tensão entre o que se aprende e o que se sabe, entre a necessidade de explorar e a vontade de conter. Diria que o artista é, nesta exposição, um aprendiz de si mesmo, das técnicas que resgata, das formas que estuda, dos ornamentos que cuidadosamente planta como quem cultiva um léxico visual. Pedro O Novo assume o estado de aprendizagem — se a exposição não se chamasse Vernissage, chamar-se-ia Eternal Apprentice, conta-me — e joga com o rigor técnico e o impulso, entre a memória das artes decorativas e o desejo de continuar a abrir janelas. No fundo, cada obra-exercício é uma passagem, cada moldura que Pedro entalha é uma fronteira transitável. Tudo parece pertencer a um processo em curso. Há mesmo a impressão de que fomos autorizados a entrar num tempo suspenso, como se Pedro tivesse interrompido, por um instante, o movimento da mão, e pudéssemos agora observar, com rara proximidade, o interior vivo do seu processo, o momento anterior ao acabamento — e no meio de tudo isso, sentimos que há qualquer coisa ainda a colar, pintura a secar, alguma madeira por tornear, algum embutido por acrescentar, que o que está por vir ainda está a ser preparado, que o gesto ainda não terminou. Vernissage é, afinal, apenas o início. Uma primeira camada. Um primeiro verniz ainda fresco. O instante inaugural de qualquer coisa que está sempre em construção.
A exposição pode ser visitada até dia 6 de Setembro deste ano.